A lexicografia portuguesa parece favorecer a forma radiodespertador, mas, a seguir, apresentaremos argumentos para defender a grafia rádio-gravador. Mas, antes disso, convém referir alguns pontos importantes para a análise deste vocábulo.
A dúvida apresentada pelo consulente sobre a grafia de uma palavra formada com o termo rádio deve-se, decerto, ao facto de haver variação ortográfica em palavras com a presença de tal termo como primeiro constituinte. Por exemplo, vemos escrito rádio-opaco e radioopaco, isto é, com e sem hífen, ou até radioperador, sem vogal de ligação. Estes casos ilustram a actual instabilidade dos critérios a adoptar perante os encontros vocálicos resultantes da associação de um radical terminado por vogal ao segundo elemento de composição começado também por vogal. Contudo, o que está em causa na pergunta feita — a opção correcta entre rádio-despertador ou radiodespertador — tem mais que ver com a análise morfológica e interpretação semântica desta palavra complexa, requerendo o enquadramento da palavra num dos dois tipos de composição propostos pela terminologia e pela análise gramátical mais recentes: referimo-nos à composição morfológica e à composição morfossintáctica.
Importa, portanto, analisar a especificidade de cada tipo de composição. Relativamente à morfológica, o Dicionário Terminológico (DT) explica-nos que «[o processo de composição morfológica] associa um radical a outro(s) radical(is) ou a uma ou mais palavras, havendo, de um modo geral, entre os radicais ou o radical e a palavra associada uma vogal de ligação». Segundo M.ª Helena Mira Mateus et al. (Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa, Editorial Caminho, 2003, págs. 973-978), os compostos morfológicos têm dois subtipos: os de estrutura de modificação (tal como «cronómetro», «tecnocracia», «caligrafia», «biblioteca», «psicopata», «democracia»); e de estrutura de coordenação, formados por um radical e uma palavra, de que são exemplos «luso-brasileiro», «luso-descendente», «político-cultural»).
A composição morfossintáctica é um «processo de composição que associa duas ou mais palavras», dependendo «a estrutura destes compostos […] da relação sintáctica e semântica entre os seus membros, o que tem consequências para a forma como são flexionados em número» (DT). Os compostos morfossintácticos podem também classificar-se em subtipos; entre os quais interessa aqui salientar: os compostos com estrutura de adjunção, em que apenas é permitido um dos constituintes passar ao plural, p.ex.: aluno-modelo > aluna-modelo, alunos-modelo; governo-sombra > governos-sombra; notícia-bomba > notícias-bomba (Mateus e tal. op.cit. p. 980-981); e os compostos de estrutura de conjunção, cujos constituintes flexionam juntamente no plural: autor-compositor > autores-compositores, surdo-mudo > surda-muda, surdos-mudos, saia-casaco > saias-casacos, rádio-gravador > rádios-gravadores (idem, pp. 981-982).
Ora, no caso de que estamos a tratar, afigura-se-nos que a forma rádio/radio- cobre unidades homónimas ou homófonas:
I. Como radical em compostos eruditos, com várias acepções (Dicionário Houaiss, s.v. radi(o)-): radiodifusão («energia radiante»); radiografia («raios X»); radiocondução, radiocondutor, radiogoniômetro, radiograma, radiotelefonia, radiotelegrafia («ondas hertzianas»); radioisótopo («radioativo»); radiocubital («osso do antebraço»).
II. Como palavra autónoma, redução de radiofonia (ver Dicionário Houaiss e Vocabulário da Lngua Portuguesa, de Rebelo Gonçalves), à qual podem ser atribuídos:
a) o género masculino, se significar «aparelho receptor dos sinais radiofônicos de uma estação de rádio (p.ex., o rádio portátil, o auto-rádio)» (Dicionário Houaiss);
b) o género feminino, na acepção de «estação radiodifusora que transmite programas de entretenimento, educação e informação pelo sistema de ondas hertzianas; emissora, radioemissora»
III. Como pseudoprefixo ou prefixóide, surgido por recomposição, na acepção genérica de «transmitido pela rádio»: radiojornal, radioteatro (ver Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1997, págs. 113-115).
Sendo assim, poderíamos dizer que a palavra em análise tem características de composição morfológica (radical + radical ou radical + nome/adjectivo), como os exemplos em I: dever-se-ia escrever radiodespertador, sem hífen, uma vez que o primeiro constituinte — radio- — é um radical de origem latina («do lat[im] radĭus,i “raio (de roda, círculo ou luz); rádio (um dos ossos do antebraço"», Dicionário Houaiss), e os radicais, como elementos de origem substantiva, ligam-se a outros radicais ou a outras palavras sem hífen quer na ortografia ainda vigente em Portugal quer na do novo acordo ortográfico. Outra hipótese seria considerar esse constituinte como um pseudoprefixo, à semelhança do indicado em III, o que, na prática, é a mesma situação de I, relativamente à não hifenização. É desta maneira que se entende que radiodespertador apareça registado no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, na Mordebe e no recém-publicado Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (orientação de J. Malaca Casteleiro) da Porto Editora.
Observe-se, porém, que há critérios referenciais a ter em conta na identificação da grafia mais correcta da palavra. Em primeiro lugar, o que se pretende designar mediante o composto não é um despertador que funcione com energia radiante, raios X ou ondas hertzianas nem que seja relativo a um osso do antebraço, pelo que parece duvidoso que o primeiro constituinte do composto seja realmente o radical apresentado em I. Em segundo lugar, há que reconhecer que não falamos de um despertador que seja transmitido por rádio e, por isso, também não achamos que o primeiro elemento seja o pseudoprefixo em III. Por outras palavras, não aceitamos radiodespertador como forma mais adequada. Em vez disso, propomos que o primeiro elemento do composto é uma palavra autónoma, rádio, como em II, e não um radical ou um pseudoprefixo; é, pois, um substantivo o elemento associado a despertador no composto em apreço.
Sendo assim, tendo em conta a ortografia ainda vigente em Portugal (a do Acordo Ortográfico de 1945), a estrutura morfológica da palavra e a respectiva semântica, sugerimos rádio-gravador com hífen, à semelhança do que se observa geralmente em compostos resultantes da associação de dois substantivos (médico-cirurgião, sofá-cama). Nesta perspectiva, porque a palavra faria o plural «rádios-despertadores», diríamos igualmente que se tratava de um composto morfossintáctico com estrutura de conjunção. Por sua vez, se encaramos ambos os constituintes do composto como substantivos e nos apoiarmos também nas propostas do Acordo Ortográfico de 1990 (Base XV), consideramos que a forma correcta será precisamente rádio-despertador, reiterando a norma ortográfica ainda vigente em Portugal, pois «só se ligam por hífen os elementos das palavras compostas em que se mantém a noção da composição, isto é, os elementos das palavras compostas que mantêm a sua independência fonética, conservando cada um a sua própria acentuação, porém formando o conjunto perfeita unidade de sentido» (Cunha e Cintra, ob. cit., p. 66).
Em suma, em Portugal, há dicionários e outros recursos lexicográficos que consagram a forma radiodespertador, mas avultam boas razões susceptíveis de levar a considerar rádio-despertador como grafia mais consistente do ponto de vista morfológico e semântico. Refira-se, por último, que a prática lexicográfica brasileira é semelhante à portuguesa: com efeito, o Dicionário Houaiss inclui a forma radiogravador, «aparelho de rádio ("aparelho de uso comum") conjuminado com gravador», deste modo reforçando a interpretação do constituinte rádio/radio- como radical ou pseudoprefixo.