Com o verbo esquecer-se é possível utilizar-se sequências do tipo «uma coisa que nunca me esquece», conforme descreve a Nova Gramática do Português Contemporâneo (p. 522) de Celso Cunha e Lindley Cintra.
A construção «alguma coisa esquecer a alguém » é uma construção alternativa a «alguém esquecer alguma coisa» e «alguém esquecer-se de alguma coisa» (no Brasil, também é possível «alguém esquecer de alguma coisa», apesar da censura normativa – cf. ibidem).
Este uso transitivo indireto do verbo esquecer-se pode admitir uma construção de estrutura diversa de outras. Assim, os elementos que normalmente surgem como complemento direto ou indireto podem ter aqui a função de sujeito.
Veja-se os seguintes exemplos:
1. «E o pior é que me esqueceu tudo, valha-me Deus! (José Régio, SM, 303) [...]» (ibidem).
Como se pode verificar, tudo assume, neste tipo de construção, a função de sujeito e o pronome pessoal me a de complemento indireto.
2. «Esqueceu-me o ocorrido».
Como podemos confirmar, o verbo é transitivo indireto, e me é complemento indireto. O constituinte «o ocorrido» assume a função de sujeito.
Nesta situação seria preferível optar por «esqueci-me do ocorrido» / «eu me esqueci do ocorrido» (versão brasileira) / «eu esqueci do ocorrido» (usado no Brasil, mas considerado incorreto, porque, aparecendo a preposição de, deve também aparecer o pronome reflexivo).
Assim sendo, a frase «uma coisa que nunca me esquece» está correta, remetendo para a análise anterior.
Façamos uma análise sintática mais detalhada para que não subsistam dúvidas:
«Uma coisa que nunca me esquece... (é ser feliz).»
«Uma coisa que nunca me esquece»: sujeito simples
«Que nunca me esquece»: modificador restritivo do nome.
(«é ser feliz»: predicado)
(«ser feliz»: predicativo de sujeito)
Por fim, não menos importante será compreender que existe uma oração subordinada relativa restritiva «que nunca me esquece». Essa oração é introduzida pelo pronome relativo que, recuperando o grupo nominal «uma coisa» e assumindo a função sintática de sujeito. Ainda nesta oração, o pronome pessoal me desempenha a função sintática de complemento indireto.
N. E. (29/09/2021) – Sobre a ocorrência desta construção do verbo esquecer, o consultor Luciano Eduardo de Oliveira enviou o seguinte comentário, que se agradece:
«Alguns exemplos literários do Brasil, todos de Machado de Assis (1839-1906):
Esqueceu-lhe o principal; esqueceu-lhe dizer que, no seu ponto de vista, um jantar de anos era um jantar a juros. (Ressurreição, cap. XV)
Nenhuma das suas circunstâncias esquecera ao médico. (Ressurreição, cap. XVIII)
Nunca me esqueceu esse fenômeno (Memórias Póstumas de Brás Cubas, cap. XII)
Nenhum meio, dos que já tinha à mão, lhe esqueceu para ver Guiomar. (A mão e a luva, cap. XVI)
Pelo que tenho observado, tal construção não é nada frequente no Brasil nem na escrita nem na fala. Diz-se "esquecer algo", "esquecer-se de algo" ou "esquecer de algo" (esta combatida pelos prescritivistas), como mencionado acima.»