Na frase apresentada pelo consulente estão descritas duas situações que contrastam entre si: o facto de o transporte ser público contrasta com o facto de o corpo da mulher não ser público. Isto significa que o contraste existente na frase não depende da palavra já, mas antes do conteúdo semântico da cada uma das orações.
Note-se, ainda, que este contraste poderia ser tornado explícito pela presença da conjunção coordenativa adversativa mas, cuja presença não impede a utilização de já.
(1) «O transporte é público, mas já o corpo da mulher não.»1
Este é um uso que é também possível identificar na literatura. Veja-se, a título de exemplo2:
(2) «A irritação ditava-lhe uma violenta resposta, mas já lho não permitia a consciência.» (Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais. 1860)
Ora, uma vez que a coordenação entre dois termos só pode ser assegurada por uma, e apenas uma, conjunção3, esta construção vem mostrar que já não é uma conjunção.
Na verdade, neste contexto, já é um advérbio que tem como função marcar o contraste entre «uma entidade A com outra entidade B relativamente à maneira como o falante encara a participação da entidade A numa determinada situação, em comparação com B.» (cf. Matos e Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1653), tendo, deste modo, um funcionamento similar ao dos advérbios focalizadores (designados advérbios de inclusão ou exclusão, de acordo com o Dicionário Terminológico).
1. Com a utilização da conjunção mas parece ser mais natural a seguinte construção «O transporte é público, mas já não o corpo da mulher.»
2. A partir de uma pesquisa simples efetuada no CRPC (Corpus de Referência do Português Contemporâneo).
3. Cf. Matos e Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1806-1807.