A construção apresentada1 é ambígua, pelo que permite duas análises distintas: o pronome relativo pode ter a função sintática de sujeito ou de complemento direto. Daqui resultarão interpretações diferentes.
Poderemos, assim, estar perante uma de duas situações, que a seguir se analisam:
(i) Pronome que tem função de sujeito:
neste caso, a oração relativa «que o poder arrebanhara e fora tosquiando a seu estrito critério» será equivalente a «uma gente provinciana arrebanhara o poder e uma gente provinciana fora tosquiando o poder a seu estrito critério». Nesta interpretação, o constituinte «o poder» tem função de complemento direto;
(ii) Pronome que com função de complemento direto:
nesta possibilidade, a oração relativa «que o poder arrebanhara e fora tosquiando a seu estrito critério» é equivalente a «o poder arrebanhara uma gente provinciana e o poder fora tosquiando uma gente provinciana a seu estrito critério», numa frase em que «o poder» tem a função de sujeito.
Ambas as interpretações estão corretas do ponto de vista sintático. Não obstante, sintaticamente também, causa alguma estranheza a opção pela colocação do complemento direto antes da forma verbal (no caso de a opção considerada correta ser a (i)).
De um ponto de vista semântico-pragmático, a opção pela interpretação (i), atendendo à caracterização que é feita da «gente provinciana» como sendo uma «raça de indolentes cheios de lábia», estrutura-se em torno da noção de que esta gente arrebanha o poder e o tosquia à sua medida, isto é, esta raça é o agente responsável pelo controlo e manipulação do poder.
Se optarmos pela interpretação de que como complemento direto, opção (ii)), a frase apresenta a «gente provinciana» como uma entidade passiva que sofre a ação do poder, entidade personificada, que a controla e a molda a seu bel-prazer, sendo que, neste caso, poderemos associar ao verbo tosquiar o sentido de uma metáfora que se completa na associação de "ovelha"/"carneiro" à «gente provinciana.
Provavelmente, o conhecimento da obra integral poderá ajudar a identificar a interpretação mais próxima das intenções do autor.
Esta análise propicia uma reflexão de natureza didática: realidades sintáticas marcadas por ambiguidades desta natureza poderão, eventualmente, ser discutidas com alunos de maior maturidade, no sentido de analisar as diferentes interpretações que suscitam, mas não poderão funcionar como frases a utilizar em exercícios de avaliação do saber, pois ter-se-ia de aceitar como corretas as duas interpretações.
Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as suas gentis palavras!
1. A frase é retirada do artigo do jornal digital Observador intitulado «Eça de Queirós ainda explica Portugal?». da autoria de Nuno Costa Santos, divulgado a 3 de abril de 2006 (disponível aqui).