Concordamos que a interpretação apresentada pelo consulente é válida e é possível. Todavia, ela tem como consequência assumir que Júlio Dinis errou. Não obstante o erro ser algo tão humano quanto, com toda a certeza, o foi Júlio Dinis, julgamos que é possível dar à frase uma interpretação distinta que a vê como um enunciado correto.
Tomemos, de novo, a frase (1) e nela o clítico o (amalgamado com lhe):
(1) «A irritação ditava-lhe uma violenta resposta, mas já lho não permitia a consciência.» (Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais. Porto Editora, p. 448)
Relativamente à análise do pronome, consideremos os seguintes aspetos:
(i) o pronome clítico o é um pronome demonstrativo invariável, que é correlato da forma forte do demonstrativo isso, pelo que não pode assumir flexões no feminino ou no plural (não estamos perante a forma acusativa do pronome pessoal de terceira pessoa que, essa sim, flexiona em género e número);
(ii) o pronome clítico demonstrativo o denota um predicado e não uma entidade e «ocorre com verbos que selecionam frases por objecto direto» (Matos em Mateus, Gramática da Língua Portuguesa. Caminho, p. 837). Na mesma gramática, a autora apresenta como exemplos desta realização frases como:
(2) «Que era culpado, ele não o declarou abertamente.»
(3) «Não havia provas concludentes para incriminar os arguidos e a juíza sabia-o perfeitamente.»
Também em Cunha e Cintra encontramos descrita esta situação: «quando no singular masculino, equivale a isto, isso, aquilo, e exerce as funções de objecto direto ou de predicativo» (Nova Gramática do Português. Edições Sá da Costa, p. 340). Aqui, os autores apresentam como exemplo:
(4) «Seguia-a com o olhar sem me atrever a evitá-lo.» (Arnaldo Santos, Prosas, p. 125)
(iii) o pronome clítico demonstrativo o pode referir-se «a um substantivo, a um adjectivo, ao sentido geral de uma frase ou de um termo dela» (Cunha e Cintra, ibidem).
Assim sendo, se considerarmos que, na frase de Júlio Dinis, o pronome clítico retoma o sentido de toda a oração anterior, como se observa na adaptação que se segue:
(1a) «A irritação ditava-lhe uma violenta resposta, mas já a consciência não permitia a X que a irritação lhe ditasse uma resposta violenta.»1
julgo que poderemos concluir que o clítico o pode ser interpretado como um pronome demonstrativo, pelo que a forma do singular masculino é a única possível. Deste modo, podemos concluir que a opção de Júlio Dinis está correta.
1. Esta será a formulação justa para a substituição e não a que foi apresentada em resposta anterior, correção feita a partir da sugestão do consulente.