Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as observações enviadas. Pela minha parte, limitar-me-ei a comentar duas delas:
1. «...desafio a compararem as conjugações do verbo intuir e arguir tal como elas estão hoje dicionarizadas em Portugal. Que salgalhada!»
Vale a pena reparar na conjugação de intuir e arguir no presente do indicativo, conforme o Acordo de 1945, ainda em vigor em Portugal no momento em que redijo esta resposta:
intuo
intuis intui intuímos intuís intuem |
arguo
argúis argúi arguimos arguis argúem |
A «salgalhada», na expressão do consulente, decorre exatamente dos critérios divergentes na acentuação de <ui> ditongo e «u-i» em hiato em verbos terminados em -uir: no verbo intuir só encontramos o acento agudo para marcar o hiato; no verbo arguir, temos o mesmo acento a marcar um ditongo.
A sequência «gu» + vogal, tal como «qu» + vogal, tem de ter um tratamento especial na ortografia, porque é geralmente um dígrafo antes das letras e e i, o que significa que geralmente, em palavras como guerra e seguir, o u não se pronuncia. Na história da ortografia do português desde 1911, uma forma de contornar esta especificidade, quando u é pronunciado, foi recorrer ao trema. No entanto, o Acordo Ortográfico de 1945 veio abolir este sinal, estabelecendo em alternativa o uso de acento agudo mesmo onde não seria de esperar. Neste contexto, o verbo adequar tem as formas acentuadas, adeqúes, adeqúe, no presente do conjuntivo, constituindo uma raridade no conjunto de grafias estabelecidas à luz do Acordo de 1945. No Brasil, como se sabe, a observância das regras do Formulário Ortográfico de 1943 estabelecia para o mesmo verbo as formas adéqües, adéqüe e adeqües, adeqüe. O novo acordo suprime, em relação ao u, quer o trema quer o acento: adeques, adeques.
2. «...a falta de uniformização dos radicais é muito pouco pedagógica»
O Acordo Ortográfico de 1945, visando unificar totalmente a ortografia no Brasil e em Portugal, preservava em muitos casos a forma do radical, parecendo seguir uma opção etimológica: ao lado de excepção, há excepcional, tendo ambas as palavras a particularidade de, no português europeu, não se pronunciar o p. À luz do Acordo Ortográfico de 1945, a letra p conservava-se nessas palavras porque: a) por um lado, no Brasil, excepcional pronuncia-se com p; b) por outro, em Portugal, o p mantém-se em excepção para indicar o timbre aberto da vogal e. O primeiro critério está exposto no 2.º parágrafo da Base VI do Acordo de 1945 (mantenho a ortografia original):
«Conservam-se não apenas nos casos em que são invariàvelmente proferidos (compacto, convicção, convicto, ficção, fricção, friccionar, pacto, pictural; adepto, apto, díptico, erupção, eucalipto, inepto, núpcias, rapto; etc.), mas também naqueles em que só se preferem em Portugal ou só no Brasil, quer geral, quer restritamente: cacto (c interior geralmente proferido no Brasil e mudo em Portugal), caracteres (c interior em condições idênticas), coarctar, contacto, dicção, facto (c geralmente proferido em Portugal e mudo no Brasil), jacto, perfunctório, revindicta, tactear, tacto, tecto, (c por vezes proferido no Brasil); assumptível, assumptivo, ceptro, consumpção, consumptível, consumptivo, corrupção, corruptela, corrupto, corruptor, peremptório (p interior geralmente proferido no Brasil, mas predominantemente mudo em Portugal), sumptuário, sumptuoso;»
O segundo critério decorria do 3.º parágrafo, que previa a conservação de c e p «[...] após as vogais a, e e o, nos casos em que não é invariável o seu valor fonético e ocorrem em seu favor outras razões, como a tradição ortográfica, a similaridade do português com as demais línguas românicas e a possibilidade de, num dos dois países, exercerem influência no timbre das referidas vogais: acção, activo [...].»
Convém referir que excepto mantinha o p por causa de excepção, prevalecendo aqui o critério da afinidade etimológica ente palavras (idem):
«4.º Conservam-se quando, sendo embora mudos, ocorrem em formas que devem harmonizar-se gràficamente com formas afins em que um c ou um p se mantêm, de acordo com um dos dois números anteriores, ou em que essas consoantes estão contidas, respectivamente num x ou numa sequência ps. Escreve-se, por isso: [...] excepto, como excepção ou exceptuar [...].»
Em suma, aquilo a que o consulente chama «uniformização dos radicais» era, muitas vezes, o resultado da convergência de critérios fonéticos e etimológicos, os quais, na prática, permitiam que, num dado campo lexical, a grafia de um radical fosse indicativa de relações morfológicas passadas e presentes.
Sobre a hipótese de tal uniformização facilitar a leitura, não encontro certezas. No Acordo de 1990 não parece ser esse o ponto de vista, quando se lê a Nota Explicativa do Acordo Ortográfico (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras, 5.ª edição, 2009, pág. XXXVI): «[...] a supressão deste tipo de consoantes mudas vem facilitar a aprendizagem da grafia das palavras em que elas ocorriam [...]».
Mas, apesar de esta supressão ter em vista a pronúncia, há quem contra-argumente, por criar opacidade noutras áreas de conhecimento linguístico, designadamente em certas relações lexicais do passado ou do presente. No documento em referência refuta-se tal crítica (idem, pág., XXXVII): «[...] baseando-se a conservação ou supressão daquelas consoantes no critério da pronúncia, o que não faria sentido era mantê-las, em certos casos, por razões de parentesco lexical. Se se abrisse tal excepção, o utente, ao ter que escrever determinada palavra, teria que recordar previamente, para não cometer erros, se não haveria outros vocábulos da mesma família que se escrevessem com este tipo de consoante.»
Em suma, trata-se de mais um dos muitos tópicos controversos que configuram a questão ortográfica no mundo de língua portuguesa.1
1 A propósito deste e outros problemas, recomendo a leitura de Ivo Castro, Inês Duarte e Isabel Leiria, A Demanda da Ortografia, Lisboa, Edições Sá da Costa, 1987, que dá uma panorâmica sobre a polémica que, em Portugal, rodeou a proposta de Acordo Ortográfico de 1986. De um dos documentos, subscrito por vários docentes do Departamento de Linguística da Faculdade de Letras de Lisboa, retenho a seguinte:
«Se, na língua materna, é indubitável que oralidade precede a escrita no que diz respeito ao processo de aquisição de elementos lexicais "comuns", não pode, no entanto, ser desprezado o papel da escrita como "via de aquisição" de elementos de vocabulários especializados, nem o papel que a leitura desempenha em comunidades maioritariamente alfabetizadas, onde é um meio privilegiado na educação dos seus membros e no acesso à informação.»
Poderia acrescentar-se que a escrita é também via de aquisição de vocabulário mais corrente. Nesse caso, a ortografia teria legitimidade para dar prioridade a certos critérios etimológicos, se estes fossem úteis para o conhecimento explícito da língua e, concretamente, das relações entre itens lexicais.