«(...) A ideia de que um sinal “é ortofónico” (“ortofônico” no Brasil) coincide com as críticas de que a abolição das ditas consoantes mudas em Portugal e de uma série de diacríticos levarão (estão já a levar, aliás) a alterações significativas na fala. Um exemplo, antigo: a queda do trema (ou do acento grave, em sua substituição) levou a que saudade já se diga só sôdade ou sòdade. (...)»
O assunto é antigo, mas regressa amiúde. No jornal brasileiro O Povo, de Pernambuco, o jornalista Elves Rabelo, que costuma escrever sobre questões linguísticas, publicou um artigo intitulado “Sem trema, a lingüiça não tem mais sabor”. Um excerto: «Com a morte do trema, o sequestro virou banal, a liquidação perdeu a graça e a língua ganhou mais uma armadilha. Agora, lingüiça, seqüestro, liqüidação e tantas outras palavras não são mais escritas com o sinal, passando a ser grafadas assim: linguiça, sequestro e liquidação. Contudo, segundo as novas regras, a pronúncia continua a mesma.» Este “agora” já tem algum tempo porque, sendo o artigo recente, a abolição do trema no Brasil (abolição que muita gente não respeita, diga-se) coincidiu com a entrada em vigor do chamado Acordo Ortográfico de 1990, no caso brasileiro em Janeiro de 2016. Mas em Portugal caiu antes.
Muito antes, até. Visto pelo dicionário, o trema é um «sinal ortográfico (¨) indicativo de que a vogal que o recebe não forma ditongo com a anterior; sinal de diérese; ápices; cimalhas». Em Portugal teve uso irregular e esparso, não se encontrando em muitos livros. D’Silvas Filho, num artigo publicado em 1998 no Ciberdúvidas, lembrou que em 1911 se recomendava a substituição do trema pelo acento grave (ex.: “agùentar”), voltando-se ao trema numa portaria de 1920 (ex.: “agüentar”), para depois o suprimir de vez em 1945. E é verdade. Consultando, por exemplo, o livrinho Nova Ortografia Portuguesa (ed. Gazeta das Aldeias, Porto, 1911) lá está: quente, quinta, quando o U é mudo; mas freqùência, eqùestre, eqùidade, quando o U é aberto, lendo-se pois, em equidade, u-i e não ui.” Mas logo o Acordo Ortográfico de 1945 se impôs, proibindo tudo. Lendo, por exemplo, uma edição brasileira do AO de 1945 (Jornal do Commercio, 1947) lê-se nas bases analíticas (XXVII): «O trema, sinal de diérese, é inteiramente suprimido nas palavras portuguesas ou aportuguesadas. Nem sequer se emprega na poesia, mesmo que haja separação de duas vogais que normalmente formam ditongo: saudade e não saüdade, ainda que tetrassílabo.»
Ora no artigo brasileiro do jornal O Povo, lê-se a dada altura esta declaração de Ernani Pimentel, professor de Língua Portuguesa e crítico do AO90: «Em entrevista à Agência Brasil, ele disse que ‘é absurdo ter tirado o trema, porque o acordo é ortográfico, só pode mexer na escrita, e o trema não é ortográfico, é ortofônico (é um sinal que significa que a letra sobre a qual há trema se pronuncia). Ele [o Acordo] mudou a pronúncia». Curioso, isto, porque a ideia de que um sinal «é ortofónico» (“ortofônico” no Brasil) coincide com as críticas de que a abolição das ditas consoantes mudas em Portugal e de uma série de diacríticos levarão (estão já a levar, aliás) a alterações significativas na fala. Um exemplo, antigo: a queda do trema (ou do acento grave, em sua substituição) levou a que saudade já se diga só sôdade ou sòdade. O U aberto foi-se com o mesmo vento que levou o trema.
Simplificar ou complicar? No Brasil, por exemplo, o U é aberto em liquidar (“li-qu-i-dar”), mas em Portugal é fechado, não se lê. E há mais exemplos desta oscilação adivinhatória. Simplificar é, pois, memorizar? Há quem ache que sim, quase sempre pelas piores razões.
Voltando ao citado artigo de D’Silvas Filho, encontra-se esta curiosa conclusão: “O trema é útil. Devia, por isso, pelo menos, ser facultativo no novo acordo”, devendo nós “poder escrever reütilize, agüentar, saüdade, etc.” O Brasil, por sua vez, trata isto como trata tudo: com humor, como se pode ver nos exemplos aqui reproduzidos. É que os “pontinhos voadores”, como os brasileiros também chamam ao trema, ainda voam por aí. Mesmo proibidos.
Cf. Parlamento rejeita desvinculação de Portugal do Acordo Ortográfico
in jornal "Público" de 26/07/2018, artigo escrito conforme a norma ortográfica anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.