DÚVIDAS

Judia e judaica como adjectivos

Num blogue intitulado Grafofone critica-se o jornalista Mário Crespo por ter empregado o adjectivo judia, em vez de judaica, nesta frase: «[Aristides de Sousa Mendes] ajudou a população judia.» 

Transcrevo a argumentação do autor do referido blogue, Ricardo Cruz:

«Hoje faz cinquenta anos que morreu (na miséria e escorraçado pelo governo português de então) Aristides de Sousa Mendes. A sua actuação durante a II Grande Guerra terá salvo centenas de milhares de pessoas da morte em campos de concentração. O jornalista da SIC Notícias, Mário Crespo, estava a apresentar uma pequena reportagem sobre a actuação de Aristides de Sousa Mendes , quando o ouço dizer "ajudou a população judia". Pois realmente a verdade é que essa afirmação é falsa... Quem ele ajudou efectivamente foi a população judaica.

Mário Crespo: errar é humano, mas há erros e erros. Para quem está numa posição na qual o que diz é ouvido por milhares de pessoas e tido como normativamente correcto, torna-se importante ter atenção a estes deslizes. Não me leve a mal, se calhar fui eu que ouvi bem demais!

Para que não restem dúvidas:

os adjectivos biformes terminados em -eu formam o feminino em -eia: europeu, europeia; hebreu, hebreia.

Contudo, judeu e sandeu são excepções: judia e sandia.

Mas a questão não reside aqui. O jornalista utilizou uma analogia entre o substantivo gentílico e o adjectivo correspondente. É que na maioria dos casos, ambos são iguais. Ex.:

português — civilização portuguesa;

alemão — civilização alemã;

russo — civilização russa;

italiano — civilização italiana.

Mas:

judeu — civilização judaica;
hebreu — civilização hebraica. (por acaso o povo também pode ser chamado de hebraico).

Conclusão: cuidado com as analogias. Há diferenças e existem por variados motivos. A de judaica reside na etimologia (do latim judaicus, a, um e por sua vez do grego ioudaikos, e, on.»

Não discordando deste argumentário, a verdade é que qualquer dicionário (da Academia das Ciências de Lisboa, os vários da Porto Editora ou o Houaiss) dá como sinónimos os adjectivos judeu/judia («mulher judia», «população judia») e judaico/judaica

Gostava de saber a opinião do Ciberdúvidas.

Obrigado.

Resposta

A argumentação de Ricardo Cruz parece ser corroborada pela edição do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa que possuo (Círculo de Leitores, 2007). Nela se atesta que judaico é adjectivo («relativo ou pertencente aos judeus ou ao judaísmo») e que judia é apenas substantivo («mulher de origem judaica»). De acordo com o mesmo dicionário, a origem etimológica de judaico é precisamente a que Ricardo Costa refere, enquanto judia virá do latim judaea, ae, que significava «mulher judia».

Contudo, é curioso, e é de salientar, que judeu esteja atestado nesse dicionário como adjectivo e substantivo e que judia, que é o seu equivalente feminino, apenas surja como substantivo.

Outros dicionários parecem ser mais coerentes neste aspecto. No Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, a primeira acepção de judia é a de adjectivo e o seu significado é este: «da Judeia». Outros dicionários, como o da Texto Editora (www.priberam.pt) e o da Academia das Ciências de Lisboa, atestam igualmente que o termo judia pode ser usado como adjectivo ou substantivo e que corresponde ao feminino de judeu. Ora, isto implica que judia pode perfeitamente ser empregado, como referiu o consulente, como sinónimo de judaica.

Assim sendo, a crítica que se faz a Mário Crespo, por ter feito (erradamente) «uma analogia entre o substantivo gentílico e o adjectivo correspondente» parece-me despropositada.

 Cf.Sobrenomes Judaicos (Sefarditas) em Portugal e no Brasil

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa