O segmento em apreço, extraído do Sermão de Santo António, de Padre António Vieira, evidencia a presença de uma anáfora, enquanto recurso expressivo que consiste na «repetição de um mesmo termo no início de várias frases, criando assim um efeito de reforço e de coesão textual.2» A anáfora está presente na repetição do pronome interrogativo quantos, que inicia quatro frases no segmento considerado.
Para além deste recurso, verificamos ainda a presença do paralelismo sintático nas quatro frases interrogativas, que constituem o excerto em análise, as quais são aqui apresentadas de forma isolada, de modo a evidenciar o paralelismo estrutural entre elas:
«Quantos, correndo fortuna na nau Soberba, com as velas inchadas do vento e da mesma soberba (que também é vento), se iam desfazer nos baixos, que já rebentavam por proa, se a língua de António, como rémora, não tivesse mão no leme, até que as velas se amainassem, como mandava a razão, e cessasse a tempestade de fora e a de dentro?
Quantos, embarcados na nau Vingança, com a artilharia abocada e os bota-fogos acesos, corriam enfunados a dar-se batalha, onde se queimariam ou deitariam a pique, se a rémora da língua de António lhe não detivesse a fúria, até que composta a ira e ódio, com bandeiras de paz se salvassem amigavelmente?
Quantos, navegando na nau Cobiça, sobrecarregada até às gáveas e aberta com o peso por todas as costuras, incapaz de fugir, nem se defender, dariam nas mãos dos corsários com perda do que levavam e do que iam buscar, se a língua de António os não fizesse parar, como rémora, até que, aliviados da carga injusta, escapassem do perigo e tomassem porto?
Quantos, na nau Sensualidade, que sempre navega com cerração, sem sol de dia, nem estrelas de noite, enganados do canto das sereias e deixando-se levar da corrente, se iriam perder cegamente, ou em Cila, ou em Caríbdis, onde não aparecesse navio nem navegante, se a rémora da língua de António os não contivesse, até que esclarecesse a luz, e se pusessem em vista?»
O paralelismo sintático fica patente na simetria do processo de construção de cada um das frases consideras.
Deste modo, poderemos identificar, no excerto em questão, a presença da anáfora e do paralelismo estrutural, entre outros recursos pertinentes.
Disponha sempre!
1. Referimo-nos ao segmento que tem início em «Quantos, correndo fortuna na nau Soberba […]» e termina em «[…] e se pusessem em vista?»
2. Cf. Carlos Ceia, E-dicionário de Termos Literários.