DÚVIDAS

Interrogações retóricas num dos sermões
do Padre António Vieira

Gostaria que me esclarecessem se, neste excerto do Sermão de Santo António aos Peixes, são visíveis interrogações retóricas ou, apenas, uma sucessão de frases interrogativas curtas.

«Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António com os pés descalços não podia fazer esta protestação; e uns pés a que se não pegou nada da terra não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos.»

Obrigada pela atenção.

Resposta

Antes de mais, convém ter-se uma ideia geral do significado de retórica para daí partir para o conceito de interrogação retórica. O Dicionário Aberto (versão eletrónica da 2.ª edição do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo) apresenta o significado de retórica como «Arte de bem falar, ou conjunto de regras relativas à eloquência». O estudioso Manuel Alexandre Júnior complementa sublinhando que a retórica é a arte de argumentar com fins persuasivos1.

Sendo a interrogação retórica ou a pergunta retórica um recurso estilístico utilizado com a finalidade de não se obter uma resposta, mas de incrementar a reflexão de uma pessoa sobre determinado assunto, sendo, também, o Padre António Vieira um dos expoentes máximos (se não o expoente máximo) da arte do discurso oratório na literatura portuguesa, perante a análise do excerto apresentado, poder-se-á inferir estar-se perante interrogações retóricas. As frases interrogativas presentes vão conformar o enunciado persuasivo e ajudam o fluir e a estruturação do pensamento lógico. A sequência das frases, interrogativas disfarçadas2, ajuda quem as profere a organizar o discurso e, perante as possibilidades apresentadas nas questões, segundo o narrador, a decisão de Santo António é perentória em negá-las de forma indireta: «mas o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos.» Esta frase declarativa não será uma resposta direta a cada pergunta veiculada, mas tão-somente o culminar do raciocínio do narrador.

Como se sabe, Vieira pretendia ser persuasivo, chamando a atenção para a situação que se vivia no Brasil e, no Sermão de Santo António aos Peixes, direciona a crítica aos colonos portugueses que perpetravam maus-tratos aos indígenas, utilizando, como ponto de partida da sua argumentação, um texto sagrado que exigia interpretação alegórica, recorrendo «com uma mestria incomparável na disposição dos recursos retóricos [...] num jogo sábio de simetrias e contrastes, de termos recorrentes com vista a um efeito estético»3

1 Júnior, Manuel Alexandre, Farmhouse, Alberto & Pena, Alberto (introdução e tradução) in Aristóteles, Retórica, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998.

2 Segundo a Infopédia trata-se de «uma frase declarativa ou assertiva disfarçada de pergunta, com o objetivo de, por um lado, modalizar ou atenuar a afirmação pretendida, e, por outro, de tornar o discurso mais vivo».

3 Saraiva, António José & Lopes, Óscar, História da Literatura Portuguesa, Lisboa, Porto Editora, 3.ª edição, p. 483.

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