No programa de Língua Portuguesa do 3.º ciclo, na parte referente ao 9.º, dizem-se coisas como as que transcrevo. Os sublinhados são meus:
«A organização da estrutura frásica» p. 49
«Explorar as diferenças de valor estético e semântico resultantes da mobilidade de elementos da frase.» p. 52
«Interpretar textos diferentes, utilizando instrumentos diversos de análise textual (categorias da narrativa, recursos da versificação, elementos da linguagem teatral, recursos expressivos…» p. 68
Estes três trechos remetem para a necessidade de conhecer a estrutura de uma frase na língua portuguesa e as possibilidades de alteração que essa estrutura pode sofrer com intenção estilística, ou estética, ou, simplesmente, de eficácia comunicativa.
A anástrofe, tal como o hipérbato e outras, é uma figura de sintaxe, ou seja, é o nome que se convencionou dar a uma determinada alteração da ordem normal, ou canónica, dos elementos de uma frase. Ao estudar as características básicas de uma frase, quer quanto aos seus componentes mínimos, quer quanto à ordem por que devem ocorrer, é importante ter consciência de que há alterações específicas e pode até ser gratificante aprender o nome que existe há já muito tempo — a palavra anástrofe já era usada em 1619 — para designar essas alterações.
No caso concreto d’Os Lusíadas, não vislumbro de que forma qualquer pessoa, de qualquer idade ou nível de ensino, pode entender algumas das suas estâncias sem ter uma noção mínima de que existem frases com uma dada estrutura básica, que importa recuperar para poder extrair sentido, ou seja, para as compreender.
Exemplifico, transcrevendo as duas primeiras estrofes da obra, que são referidas explicitamente como devendo ser analisadas no 9.º ano:
Canto I
As armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
Pergunto de que forma se podem relacionar os dois excertos sublinhados, se não se reflectir um pouco sobre a sintaxe do português. Claro que, em rigor, o exemplo assinalado não é uma anástrofe. Mas serve para ilustrar o que é importante, ou seja, a necessidade de um jovem do 9.º ano conhecer bem a estrutura da língua portuguesa para poder ordenar de forma canónica os elementos sublinhados, chegar a «espalharei as armas e os Barões assinalados, por toda parte» e perceber que o primeiro verso d’Os Lusíadas é, afinal, o complemento directo de um verbo que aparece no penúltimo verso da 2.ª estância.
Para concluir, creio que não existe no programa do 9.º ano o termo anástrofe como palavra a decorar obrigatoriamente. Mas, sem dominar o conceito que lhe está subjacente, duvido de que um jovem do 9.º ano perceba os textos de autor que deve conhecer. À segunda questão respondo, pois, que sim, o conhecimento do que é a figura de sintaxe anástrofe, e outras similares, é imprescindível para a compreensão e o estudo d’Os Lusíadas. E repare que não me refiro ao conhecimento da palavra, que, a existir fará de si um falante mais rico, com mais vocabulário. Refiro-me sobretudo ao conceito, ao significado. Se o dominar será, sem dúvida, um falante mais expedito, com maior capacidade para tornar o seu discurso mais eficaz em muitas situações da vida real.