Relativamente às figuras de estilo presentes nas frases apresentadas pelo consulente:
Sobre a primeira frase — «Tinha das mulheres lindas as graças belas, infindas de encantos, encantos mil»:
Antes de mais, a construção da frase — decerto intencional — gera ambiguidade, pois pode ter duas leituras:
a) O sujeito poético (se for um sujeito de primeira pessoa/eu de um texto lírico) ou o sujeito de enunciação/narrador (se for um texto narrativo) «tinha das mulheres lindas as graças belas», graças essas que, por sua vez, eram «infindas de encantos, encantos mil», o que significa que esse sujeito poético tinha a arte/o poder de receber de todas as «mulheres lindas» não somente as «graças belas» comuns, momentâneas ou breves, mas infinitas e repletas de «encantos»;
b) o sujeito poético ou o sujeito de enunciação tem a arte/o poder de receber «as graças belas» das «mulheres lindas» que, por sua vez, eram caracterizadas também com outros atributos — «infindas de encantos, encantos mil»;
c) o sujeito do enunciado pode estar na terceira pessoa, tratando-se de um «ele» sobre o qual o sujeito de enunciação fala. Tratar-se-á, então, de um «ele» que é objecto/alvo de atenção do sujeito de enunciação pela singularidade do seu poder de sedução junto de uma elite de beleza feminina. Neste caso, devido a esse atributo invulgar, o sujeito de enunciação centra aí o seu olhar — e o seu texto —, revelando a admiração que sente por «ele».
Portanto, há nesta frase um jogo de palavras e de construção, o que não invalida, quer tenha um sentido ou outro, a presença das seguintes figuras e recursos estilísticos:
Anástrofe — em «Tinha das mulheres lindas as graças belas» — «Tinha as graças belas (ou «as belas graças») das mulheres lindas» — e em «encantos mil» em vez de «mil encantos», uma vez que há a «inversão da ordem natural das palavras na frase, para obter determinado efeito estilístico» (E-Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia, org.). Ao colocar «das mulheres lindas» antes de «as graças belas (e, se «infinidas de encantos, encantos mil» se referir às «graças belas»), o sujeito de enunciação está a destacar as «mulheres lindas», evidenciando a sua capacidade de sedução em cativar essas mulheres que sobressaem pela invulgaridade da sua beleza. Ao caracterizar de forma elogiosa o objecto desejado (e obtido), o sujeito deixa transparecer o seu orgulho, a sua vaidade e a segurança de um sedutor.
Pleonasmo — repetição de ideias relativas aos campos semânticos da beleza, da graciosidade e da infinitude — «mulheres lindas, graças belas, infindas de encantos, encantos mil» —, provocando «um efeito de eco semântico». Este recurso é aqui utilizado para «dar maior relevo a um pensamento ou sentimento», razão pela qual se pode dizer que se trata de um «pleonasmo vicioso» (idem).
Poder-se-á dizer que existe, também, a hipérbole, uma vez que se verifica uma «amplificação crescente, […] por excesso» (idem) da mulher ou das graças que ela lhe oferece.
Anáfora ou repetição anafórica do termo «encantos» — «encantos, encantos mil», sugerindo um jogo de palavras, figura de retórica que pretende criar «um efeito de reforço e de coerência» (idem), o que nos leva à aliteração, uma vez que se verifica a «reiteração de fonemas consonantais idênticos ou semelhantes», fenómeno que «serve para efeitos de harmonia».
Por sua vez, da análise da segunda frase, «E no seu todo brilhava o ar mais doce e gentil», verifica-se a presença de: pleonasmo em «ar […] doce e gentil», pela reiteração do campo semântico da doçura; metáfora em «brilhava», pois está aí presente «um processo pelo qual, aproximando duas palavras, se opera uma deslocação de uma para outra através de um termo intermédio subentendido […], havendo uma deslocação de sentido através do termo intermédio subentendido» (João David Pinto Correia, «A Expressividade na Fala e na Escrita», in Falar melhor, Escrever melhor, Lisboa, Selecções do Reader´s Digest, 1991, p. 502). Nessa frase, há aí a fusão de duas realidades sem o termo de ligação/comparação (o «ar mais doce e gentil» parecia que «brilhava» no seu todo, ou ainda, esse ar era de tal modo «doce e gentil», que criava a ilusão de como se tal doçura e gentileza brilhasse), sugerindo o brilho a aura de diferença que tal pessoa irradiava.
Quanto às questões apresentadas sobre o sujeito poético — «aprendi que num texto poético se expressa o eu, sentimentos e por aí adiante. Será possível um texto poético ser descritivo? Como identificar o sujeito poético dum texto poético? Que metodologia seguir para alcançar esse objectivo?»:
Sempre que se fala de um texto poético/de um texto lírico, não podemos esquecer-nos da particularidade desse tipo de texto, pois «o que forma o conteúdo da poesia lírica — afirma Hegel na sua Estética — não é o desenvolvimento de uma acção objectiva alargando-se até aos limites do mundo, em toda a sua riqueza, mas o sujeito individual e, por conseguinte, as situações e os objectos particulares, assim como a maneira segundo a qual a alma, com os seus juízos subjectivos, as suas alegrias, as suas admirações, as suas dores e as suas sensações, toma consciência de si própria no seio deste conteúdo» (Victor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 1983, p. 582).
Como o consulente bem disse, «num texto poético expressa-se o eu» ou, dito de outra forma, é um sujeito poético de primeira pessoa que(m) fala num texto lírico, que se revela pela escrita e nos revela a sua interioridade e pensamento, pois «o poema lírico […] não representa dominantemente o mundo exterior e objectivo, nem a interacção do homem e deste mesmo mundo, assim se distinguindo do texto narrativo e do texto dramático. A poesia lírica não se enraíza no anseio ou na necessidade de descrever o real empírico, físico e social, circunstante ao eu lírico, nem no desejo de representar sujeitos independentes deste mesmo eu […], enraíza-se, em contrapartida, na revelação e no aprofundamento do eu lírico […]» (idem, p. 583). Neste tipo de texto, tudo gira à roda do eu, dos seus sentimentos, emoções e sensações e, por isso, «o mundo exterior […] não representa para o eu lírico uma objectividade válida enquanto tal, pois constitui um elemento semântico-pragmático do texto lírico somente enquanto se projecta na interioridade do poeta, enquanto se transmuta, nas “galerias da alma” […]. Assim, o acontecimento exterior, quando está presente num texto lírico, permanece sempre literalmente como um pretexto em relação à estrutura e ao significado desse texto: o episódio e a circunstância exteriores podem funcionar como elementos impulsionadores e catalícos da produção textual, mas a essencialidade do poema consistirá, graças à fulguração da palavra, na emoção, nas vozes íntimas, na meditação, na ressonância mítica e simbólica, enfim, que tal episódio ou tal circunstância suscitam na subjectividade do poeta» (idem, p. 584).
Ora, se a realidade exterior não passa de um pretexto «para a revelação da paisagem íntima do eu lírico» (ibidem) — paisagem essa que é um reflexo da sua interioridade, revelando-se como uma paisagem de amargura, ou de paz e de serenidade, ou como um refúgio, ou uma imagem de alegria, de identificação, de violência interior, de revolta, de inconformismo, de saudade, de mágoa, … —, o objectivo do seu texto não é o de fazer a descrição dessa realidade exterior de que fala, mas retirar dela o que «toca» o sujeito poético. É por esta razão que «o texto lírico não comporta descrição semântica e funcionalmente semelhantes às de um texto narrativo e dramático, pois a ocorrência de tais descrições equivaleria a representar o mundo exterior ao eu lírico como objectividade esteticamente significativa […]» (idem, p. 585).
Quanto à questão da descrição na poesia lírica, Aguiar e Silva elucida-nos sobre a «chamada “poesia descritiva” [que] só é liricamente válida quando transcende um inventário e uma nomenclatura de seres, coisas e eventos, quando utiliza a descrição como um suporte do universo simbólico do poema» (ibidem).
Por exemplo, nos poemas Casa Branca, Cidade, Mar, Lisboa, de Sophia de Mello Breyner Andresen, parece haver a fixação descritiva de um determinado aspecto da realidade exterior observada pelo sujeito poético, como se pode verificar através dos seguintes excertos:
«Casa branca em frente ao mar enorme,/Com teu jardim de areia e flores marinhas/E o teu silêncio Intacto em que dorme/O milagre das coisas que eram minhas» (Casa Branca);
«Cidade, rumor e vaivém sem paz nas ruas,/Ó vida suja, hostil, inutilmente, gasta/ Saber que existe o mar e existem praias nuas,/Montanhas sem nome e planícies mais vastas/Que o mais vasto desejo,/E eu estou em ti fechada e apenas vejo/Os muros e as paredes e não vejo/Nem o crescer do mar nem o mudar das luas» (Cidade);
«De todos os cantos do mundo/Amo com um amor mais forte e profundo/Aquela praia extasiada e nua»,/Onde me uni ao mar, ao vento e à lua» (Mar);
«Digo:/“Lisboa”/Quando atravesso — vinda do sul — o rio/E a cidade a que chego abre-se como se do seu nome nascesse/Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna/Em seu longo luzir de azul e rio/Em seu corpo amontoado de colinas —/ Vejo-a melhor porque a digo/Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência/ Porque digo/Lisboa com seu nome de ser e de não-ser/Com seus meandros de espanto insónia e lata/E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro» (Lisboa).
Mas estas "descrições" não representam o real objectivo, mas o modo como o sujeito poético "vê" a casa branca da sua infância, a cidade, o mar e Lisboa, caracterizações onde transparecem a sua subjectividade, os seus sentimentos, emoções e sensações face a esses universos.
Apercebemo-nos, assim, de que «os elementos descritivos dos poemas […] não configuram uma topografia, isto é, a descrição de um lugar, de uma paisagem, evocando antes os estados de alma» (idem, p. 586) do sujeito poético: sensação de segurança, de saudade e de identificação em Casa Branca («A ti voltarei após o incerto/Calor de tantos gestos recebidos/Passados o tumulto e o deserto» […] «Em ti renascerei num mundo meu»; sensação de angústia e de claustrofobia em Cidade; sensação de liberdade e de bem-estar em Mar e o misto de deslumbramento e de inconformismo, fruto da lucidez do eu, em Lisboa. Portanto, «cada elemento descritivo representa um símbolo que desnuda uma feição da interioridade do sujeito poético» (ibidem).
Por último, para se poder identificar o sujeito poético num texto lírico/poético, recorre-se ao predicado, às formas verbais através das quais ele se revela, aos determinantes possessivos (meu, minha, meus, minhas), aos pronomes pessoais oblíquos (me, mim, comigo). Nos textos acima, o sujeito poético aparece explícito através do pronome pessoal de primeira pessoa — eu —, através das formas verbais ou de outros elementos: «O milagre das coisas que eram minhas», «E eu estou em ti fechada e apenas vejo/Os muros e as paredes e não vejo», «Amo com um amor […] Onde me uni ao mar», «Quando atravesso […] E a cidade a que chego».
Não nos podemos esquecer de que o texto literário se caracteriza pelo «discurso [escrito] que, por sua vez, se actualiza em processo de comunicação, de um eu que escreve ou fala a um tu que lê ou ouve, de um emissor a um receptor» (Maria Alzira Seixo, «A Leitura e a Escrita», in Émile Benveniste, O Homem na Linguagem, ensaios sobre a instituição do sujeito através da fala e da escrita, Lisboa, Arcádia, 1976, p. 16).