Latim em Pó é um livro sobre a história da língua portuguesa na perspetiva do Brasil, escrito por Caetano W. Galindo e editado pela Companhia das Letras. O título é emprestado de um verso da canção "Língua" (Velô, 1984), de Caetano Veloso1, que descreve o português como «latim em pó».
Constituído por 19 capítulos, a exposição desenrola-se num estilo direto, simples, mas sempre convidativo à reflexão, o que torna a leitura muito agradável. Sem ceder a simplificações excessivas, porque o autor leva a sério a missão de revelar a enorme complexidade implicada do fenómeno da linguagem humana e das línguas que lhe dão historicidade.
Os dois primeiros, "Bem-vinda" e "Roçar a língua de Camões", são em conjunto uma introdução, salientando a importância do tema e os objetivos da obra. O autor dá conta de como, em comparação com outros países e regiões, e apesar da presença de outras línguas faladas no seu vasto território, é surpreendente a relativa uniformidade linguística do Brasil, que tem sido mal interpretada historicamente: «a história da implementação da língua portuguesa no nosso território [...] nada tem da narrativa pacificada, meio oficial e meio preguiçosa, que nós mesmos costumamos adotar». Outra finalidade do livro é também a de pôr em causa a ideia de que ninguém «fala certo» no Brasil.
Os nove capítulos seguintes – "O começo de tudo", "O povo dos cavalos", "Roma", "A outra Roma", "Os 'bárbaros' e as aspas", "Os 'árabes' e mais aspas", "A Reconquista", "Antes de nós" e "Kriol" – retomam os tópicos habituais de outras histórias da língua portuguesa, mas recuando aos primórdios do proto-indo-europeu e continuando até ao fenómeno de crioulização que a expansão imperial de Portugal ocasionou. No capítulo "Roma", Galindo sublinha uma conclusão imposta pela temporalidade do fenómeno linguístico: «a verdade das verdades da linguística histórica é uma verdade desde sempre: as línguas mudam, o tempo todo».
Os restantes capítulos – "Cabral", "Gerais", "Morte", "Áfricas", "Pretoguês" e "Abismo" – são de enorme interesse, porque propõem uma síntese inovadora da génese do português brasileiro e avançam hipóteses sobre o português como fator politicamente unificador do Brasil e, em sociedade, paradoxalmente fraturante. Retoma-se, assim, a tardia generalização, só a partir de meados do século XVIII, do português, mas realça-se o papel da população afrodescendente no espraiamento da língua por via de correntes migratórias internas ocorridas desde o século XIX e ainda hoje ativas. O autor assinala, portanto que «talvez o fator determinante para a vitória do português em terras brasileiras tenha sido a dispersão dessa mão de obra negra por seu território (capítulo 15, "Áfricas"); assinala ainda que «[o] que vem sendo aventado por mais e mais pesquisadores é que teriam sido justamente os falantes africanos em terras brasileiras os responsáveis pela formação e difusão do português brasileiro no que ele realmente tem de seu» (capítulo 16, "Pretoguês"); e deixa a sugestão: «Talvez caiba deixar de lado por um momento a bela ideia da “última flor do Lácio”. O português brasileiro foi um broto africano, flor de Luanda» (ibidem).
Os dois últimos capítulos – "Uma língua, muitas línguas" e "Quem há de negar que esta lhe é superior" (que, mais uma vez, é retirado da canção "Língua", de Caetano Veloso) – são uma reflexão, com o seu quê de contida emoção. Por um lado, identificam-se os problemas levantados pela definição de norma, em contraste com o português brasileiro real; por outro, procura-se definir o atual horizonte do idioma, não rejeitando a via pluricêntrica, em solidariedade com os outros países em que o português criou raízes culturais e políticas.
É, portanto, de saudar a publicação deste livro, que, dirigido ao grande público, não envereda por simplismos e dá um excelente contributo para o debate em torno do passado, do presente e do futuro da língua portuguesa.
1 Trata-se de um dos versos do estribilho da referida canção: «Flor do Lácio/ Sambódromo/ Lusamérica/ Latim em pó/ O que quer/ O que pode esta língua?».
Este é um espaço de esclarecimento, informação, debate e promoção da língua portuguesa, numa perspetiva de afirmação dos valores culturais dos oito países de língua oficial portuguesa, fundado em 1997. Na diversidade de todos, o mesmo mar por onde navegamos e nos reconhecemos.
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