Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Escreve-se «Na soleira da porta» ou «À soleira da porta»?

O contexto é o de uma pessoa que está nesse sítio, mas sinceramente soa-me muito melhor «à soleira».

Obrigado.

Resposta:

Diz-se e escreve-se das duas maneiras.

Ambas as construções estão corretas e podem ocorrer em contextos semelhantes. Há abonações literárias e não literárias (fonte: Corpus do Português):

A- «na soleira da porta»

(1) «O charnequenho estava na soleira da porta afiando uma foice roçadoira» (Aquilino Ribeiro, Terras do Demo, 1919)

(2) «A Tò-Carocha sentava-se na soleira da porta» (José Régio, O Príncipe com Orelhas de Burro, 1942)

B- «à soleira da porta»

(3) «mulheres despenteadas cosendo à soleira das portas» (Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires, 1900)

(4) «Sentadas à soleira de uma porta, um grupo de senhoras observam o vaivém de gente que se aglomera junto ao pelourinho.» ("Sob o mesmo céu", Terras da Beira, 07/08/1997).

Pergunta:

É cada vez mais frequente ouvir a palavra litrada na hotelaria.

Nesse sentido, tentei consultar o seu significado em diversos dicionários sem obter qualquer resultado.

Ainda ontem, na minha hora de lazer, fui com umas colegas de trabalho a tomar café e ouvi uma conversa que sobressaía do tumulto. De forma bastante clara, um cliente dizia: «traga-nos uma valente litrada de cerveja, por favor».

A minha dúvida é se existe e ainda não foi incluída nos dicionários, ou se é apenas um termo usado na região do Porto.

Se existir, pode ser incluída em textos literários?

Obrigada!

Resposta:

Como bem demonstra na pergunta, a palavra litrada existe na medida em que tem uso, mas não tem registo nos dicionários de que dispomos.

Além disso, é palavra bem formada, construída de acordo com as regras gerais de criação de palavras, neste caso, derivando do radical de litro litr- – pela adjunção (sufixação) do sufixo -ada, à semelhança de outras palavras: pratada (de prato), tachada (de tacho). Nestes casos, o sufixo -ada sugere qualquer coisa que se come ou bebe em grande dose.

Note que -ada é sufixo que ocorre frequentemente e que pode gerar espontaneamente novas palavras, criação que os dicionários nem sempre acompanham, como acontece com litrada, que não tem registo dicionarístico. Como qualquer falante de português é capaz de formar este tipo de palavras, também não se pode dizer que se trate de um termo típico de uma região em particular.

A palavra litrada pode ocorrer em textos literários, uma vez que estes, de forma criativa, lançam mão de todo o léxico e de todos os mecanismos de formação de palavras. Tal não significa que litrada possa ter uso em situações formais. Convém, portanto, não confundir expressão literária com comunicação formal.

Pergunta:

Qual é a grafia do gentílico de San Diego (Califórnia) em português?

A Wikipédia e Wikcionário dizem que, em inglês, é San Diegan e, em espanhol, é sandieguense, mas e em nosso idioma mesmo? Como que fica?

Muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

A respeito de San Diego, não temos indicação de que exista um gentílico estável em português.

Há, pelo menos, duas possibilidades, tendo em conta o modelo de São Tomésandieguense e são-dieguense.

Pergunta:

Deparo-me que a palavra "súper" começa a aparecer com acento, mas que em algumas ocasiões não tem. Qual é a regra?

Sozinha, a palavra tem sempre acento?

Há alguma ocasião em que não tenha?

Quando aparece em palavra composta, nunca tem acento?

Gostaria da vossa ajuda, por favor. Obrigada

Resposta:

Quando se usa sozinha, a forma súper é nome e adquire acento gráfico: «Vou ao súper» (= supermercado).

Não exibe acento em compostos, mesmo quando separado por hífen: super-homem. Este preceito, que se aplica ao uso prefixal de super- e não foi alterado pelo Acordo Ortográfico de 1990,  encontra-se descrito no Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947, p. 151), de Rebelo Gonçalves:

«OBS. — Os prefixos hiper-, inter- e super-, quando ligados por hífen ao elemento imediato, dispensam, apesar de normalmente paroxítonos, o acento agudo na penúltima sílaba: hiper-hedonismo, inter-resistente, super-homem

Pergunta:

Como deve ser escrito o topônimo italiano Cagliari em língua portuguesa e qual seria o seu gentílico?

Pesquisando na Internet me apareceram as seguintes formas: "Cálari", "Cálhari" e "Cálher". Caso exista mais de uma forma correta, qual seria a mais usual?

Resposta:

Geralmente, o nome da capital da Sardenha mantém a forma italiana em português: Cagliari, Cagliari1.

É difícil achar uma forma portuguesa de Cagliari que possa ser considerada usual. Na verdade, este topónimo não é dos mais correntes na comunicação social em português, a não ser em páginas turísticas sobre a Sardenha ou quando se refere um clube de futebol, o Cagliari Calcio ou, simplesmente, Cagliari (cf. Corpus do Português, de Mark Davies).

Apesar disso, regista-se Cálher, que não se deteta atualmente e cuja configuração sugere empréstimo do castelhano Cáller, por sua vez, adaptação do catalão Càller. Cálari é outra possibilidade, de uso muito raro, que parece provir do latim Calăris, variante de Carălis. Conta-se ainda Cálhari, um aportuguesamento fonético e ortográfico do italiano Cagliari. Estas três formas ocorrem no artigo da Wikipédia sobre a cidade italiana em apreço, mas, como foi dito, ocorrem muito raramente.

Quanto ao adjetivo, sugere-se aqui transpor-se para português a forma italiana sem alterações: cagliaritano.

Fontes: Dictionnaire Gaffiot latin-français, 1934; Ivo Xavier Fernandes, Topónimos e Gentílicos, ...