Pergunta:
Gostaria de esclarecer uma dúvida sintática a partir de uma frase escrita por Fernando Pessoa:
«Sim, não há desolação, se é profunda deveras, desde que não seja puro sentimento, mas nela participe a inteligência, para que não haja o remédio irónico de a dizer.»
O trecho que mais me intriga é: «...mas nela participe a inteligência...»
Minha dúvida é quanto à natureza sintática e estilística dessa construção. Em português corrente, eu esperaria algo como: «...desde que nela participe a inteligência» ou «...a não ser que nela participe a inteligência», ou mesmo «...mas somente se nela participar a inteligência».
A forma usada por Pessoa – «mas nela participe» – parece deslocar-se do uso adversativo comum do mas e se aproximar de uma construção concessiva ou condicional elíptica, talvez por razões estilísticas.
Essa forma poderia ser considerada um galicismo sintático? Ou haveria influência do inglês, língua que Pessoa dominava e na qual também escrevia? Em inglês, construções como «There is no desolation, but that in it takes part the intelligence» seriam estilisticamente aceitáveis em prosa poética antiga, o que me faz suspeitar de possível interferência estrutural.
Gostaria de saber como se classifica esse uso do mas na gramática do português e se há paralelos em nossa tradição sintática ou se trata mesmo de uma licença poética.
Agradeço desde já pela atenção e pelos esclarecimentos.
Resposta:
Não é possível aqui confirmar que a construção usada por Pessoa é claramente uma construção decalcada do francês ou do inglês. Não temos, portanto, uma resposta categórica.
Tenha-se em conta que o Livro do Desassossego só foi publicado nos anos 80 do século passado, com base num manuscrito que não foi revisto pelo autor. É, portanto, natural, que ocorram por vezes algumas construções que se revelam mais discutíveis do ponto de vista sintático e semântico. Supõe-se, portanto, que, perante a sequência em causa, há uma formulação alternativa que pode ser mais natural em português:
(1) «... desde que não exista puro sentimento e nela participe a inteligência...»
Como a conjunção e tem vários matizes semânticos (é polissémica), podemos detetar certo valor adversativo na oração coordenada «e nela participe a inteligência», que poderia ser expresso pela locução «pelo contrário»:
(2) «... desde que não exista puro sentimento e [, pelo contrário,] nela participe a inteligência...»
Sendo assim, na frase em causa, a conjunção mas ocorre efetivamente com o seu valor adversativo próprio, mas, sintaticamente e do ponto de vista da coesão textual, seria de esperar um outro tipo de ligação entre as orações coordenadas pela locução «desde que». Por exemplo, seria também de esperar que, referencialmente, os sujeitos das orações coordenadas se identificassem: «desde que [essa desolação] não seja puro sentimento, mas inclua, sim, a inteligência».
Quanto à hipótese em inglês que propõe, não temos capacidade para a avaliar, mas afigura-se-nos uma conjetura difícil de verificar, na falta de outros textos pessoanos suscetíveis de revelar algum padrão de escrita indicativo de decalque.
Em suma, consideramos que o mas na frase em questão não deixa de ser adversativo. No entanto, a sua ocor...