« (...) Língua pluricêntrica, falada atualmente por mais de 250 milhões de pessoas espalhadas pelo mundo (...) colorida, marchetada, capaz de comunicar de forma internacional, multifacetada, global. (...)»
Ao longo dos tempos, os falantes europeus da língua portuguesa entraram em contacto com falantes de outras línguas por vários continentes, daí resultando diferentes variedades ¹ .
Urge salientar que a existência de variantes e de variedades de um dado sistema linguístico constitui uma mais-valia para a própria língua. Trata-se, efetivamente, de um aspeto enriquecedor ao nível do léxico, com a introdução de novas palavras relativas aos diversos universos de referência. Além disso, no que diz respeito à gramática, essa variedade reflete a própria história da língua, nos locais onde é utilizada.
De entre as variedades dialetais, uma é geralmente adotada como padrão, tendo por base a relação que estabelece com a escola e o ensino explícito da língua e cujos objetivos são primordialmente socioculturais e comunicativos.
A utilização normativa do padrão tem sido apresentada como prestigiante em alguns dos meios de comunicação e nas situações formais e institucionais. Contudo, esse conceito também vai mudando, fruto de todas as influências e/ ou interferências que se refletem no uso da língua.
Apesar de algumas dessas variantes, em contacto com outras línguas nativas e não-nativas, revelarem parâmetros fonéticos, fonológicos, morfológicos, sintáticos, semânticos e pragmáticos distintos do português europeu, o português continua a ser a língua oficial e, em 2050, será falado por mais de 400 milhões de pessoas.
Vejamos algumas diferenças entre o português falado no Brasil e o europeu:
A nível fonético, tal como acontece no português falado em África, as vogais átonas são menos reduzidas do que no português europeu. Por exemplo: partir; morar; leve.
O /t/ e o /d/ palatalizam e realizam-se com africadas antes de /i/ tónico, enquanto no português europeu continuam a pronunciar-se como oclusivas (exemplos: tinto, pede).
O /l/, em final de sílaba e de palavra, pronuncia-se como a semivogal /w/, enquanto no português europeu se velariza (exemplos: Brasil, salvar).
No português falado no Brasil, as sibilantes em final de sílaba e de palavra pronunciam-se como palatais; no português europeu, mantêm-se como /s/ e /z/ (exemplos: lesma, maridos).
Uma outra diferença verifica-se pela introdução de um /i/ por epêntese entre duas consoantes que não formam grupo. Vejamos os exemplos: cap/i/tura, ab/i/surdo.
Ainda no que diz respeito à pronúncia, o acordo ortográfico de 1990 procurou estabelecer algumas regras que regulamentassem a grafia de algumas palavras, na medida do possível, uma vez que houve a preocupação de se respeitar as diferenças de cada uma das variantes, havendo, portanto, grafias duplas.
Deste modo, a fonética serviu de base e devemos escrever conforme a pronúncia que temos. Vejamos, por exemplo, algumas grafias convenientes em Portugal: aspeto, cato, carateres, cetro, conceção, perentório, receção, setor. Nestes casos, a variante brasileira não emudece a consoante, preservando o grupo consonântico. Assim, no português falado no Brasil devem escrever aspecto, cacto, caracteres, ceptro, concepção, peremptório, recepção.
Por outro lado, em Portugal existem algumas palavras cujas consoantes são articuladas, enquanto não o são no português falado no Brasil. É o caso de amígdala, amnistia, amnistiar, facto, indemnizar, omnipotente, omnisciente, súbdito, subtil, sumptuoso, sumptuosidade. Nestes casos, verifica-se, igualmente, a dupla grafia.
No Brasil, segue-se a mesma regra, optando pela outra variante: amídala / amígdala, anistia, anistiar , fato, indenizar, onipotente, onisciente, súdito, sutil, suntuoso, suntuosidade.
Em suma, a este nível, o acordo ortográfico de 1990 introduziu alguma tolerância ortográfica, através da opcionalidade, embora esse critério deva ser usado com rigor.
A nível morfológico e sintático, no português falado no Brasil, verifica-se a utilização dos pronomes “ele” / “ela” e “lhe” em vez dos pronomes pessoais forma de complemento direto “o” / “a” / “os”/ “as”. Eis alguns exemplos: Eu vi ela na escola. Eu quero lhe conhecer.
No português falado no Brasil também se colocam em posição proclítica os pronomes que, no português europeu, têm posição clítica (exemplos: Me explique esse assunto; ela se aborreceu).
Além disso, o português falado no Brasil privilegia várias construções com o gerúndio ao passo que o português europeu prefere o infinitivo (exemplo: ele está ouvindo música).
Os verbos “fazer” e “ter” assumem também construções com significados diferentes dos do português europeu. Vejamos:
Faz um ano ele partiu. Tem um ano que ele partiu. Tem fumo no ar. Tinha muita gente na rua.
Uma outra situação particular do português falado no Brasil é a ausência de artigo, antes de possessivo pré-nominal (exemplo: Eu não vi teu irmão).
Relativamente às formas de tratamento, verifica-se diferenças que urge destacar. Assim, o “você”, usado no Brasil, substitui o “tu” do português europeu. No Brasil, utiliza-se “senhor” e “senhora”, nos grupos profissionais, nos cargos ou títulos; no português europeu, privilegia-se o nome próprio, o cargo, o título e o grau de parentesco (ex.: PB - O senhor vai entrar? / PE – O João vai entrar? / O chefe vai entrar? / O doutor vai entrar? O pai vai entrar?)
No que diz respeito ao léxico, quanto maior a diversidade, maior a riqueza de uma língua, a nossa, a portuguesa.
Assim, entre o português falado na europa e o do Brasil, devemos considerar as palavras que, apesar de serem iguais, têm significados diferentes. É o caso de “banheiro”, que no Brasil significa casa de banho e, em Portugal, salva-vidas. Temos ainda as palavras derivadas com a mesma base e diferentes sufixos, mas com idêntico significado (fumante – PB; fumador – PE) ou então palavras com o mesmo sufixo e diferentes bases, mas com significado idêntico (encanador – PB; canalizar – PE).
A língua portuguesa é também falada no continente africano. Assim, por exemplo, no que diz respeito a Angola, existem, além de uma norma culta nacional, outras normas à margem daquela. Houve, pois, um esforço de aprendizagem da língua portuguesa normativa, mas a comunidade falante foi adaptando as estruturas das línguas bantu ao português, criando uma convergência linguística nas interações idiomáticas. Neste caso, observam-se, nomeadamente interferências de nível lexical, o que motiva a lexicalização em português de vocábulos originários do bantu; de nível fonético, fornecendo pistas para a caracterização dos sistemas vocálico e consonântico do português local, de nível morfossintático, cujos estruturas são alheias ao português europeu. ²
Nesse sentido, uma língua histórica não é um sistema linguístico unitário, mas um conjunto de sistemas linguísticos, isto é, um diassistema, no qual se inter-relacionam diversos sistemas e subsistemas».³
A língua portuguesa é feita de evolução, que resulta de variação. E esta dinâmica da Língua Portuguesa é sinónimo de crescimento e devemos encará-la como uma língua pluricêntrica, falada atualmente por mais de 250 milhões de pessoas espalhadas pelo mundo.
Em conclusão, a língua de todos é muito mais do que uma língua-padrão europeia. É colorida, marchetada, capaz de comunicar de forma internacional, multifacetada, global. É uma língua enriquecida e em movimento. É democrática e aberta ao mundo. É a língua de todos nós.
¹ Cf. Variedades do Português no mundo e no Brasil
² Cf. Caracterização da norma do Português de Angola
³ Cf. CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley (1984): Nova Gramática do Português Contemporâneo. 15.a ed. Lisboa: João Sá da Costa.
Apontamento da professora Lúcia Vaz Pedro, constante de uma das suas aulas a alunos do ensino secundário em Portugal sobre o idioma comum dos oito paíse fundadores da CPLP e das suas variedades