«[...] a absorção de vocábulos do latim ou do grego não era igual à de termos de línguas «vulgares» – as línguas não clássicas. Tomar empréstimos do latim e do grego era considerado «construção do português», desde que respeitasse o «gênio» da Língua Portuguesa [...].»
Quem ama a Língua Portuguesa sabe que ela não é estanque, não é um dicionário ou uma gramática, matéria morta a ser decorada. A língua é um processo vivo, no qual constantemente são recuperadas tradições e construídos novos significados e visões de mundo.
É pela língua que é construído e moldado nosso pensamento, como nos ensina Vygotsky. Um pensamento revolucionário, progressista e inovador sabe reconhecer o valor inestimável de mudanças e novidades que desabrocham constantemente em seu solo fértil.
Por muito tempo, perdurou um conceito de língua derivado do platonismo. Acreditava-se que as línguas, tais como «rótulos», davam caráter sonoro e escrito à essência imanente das coisas do mundo. Já mais para os tempos do Romantismo, havia a ideia de que a língua expressava o espírito de uma nação ou de um povo, tendo, portanto, um caráter. Sob essa perspectiva, era difícil aceitar mudanças e criações na língua e com a língua. Por isso, invariavelmente foi polêmica a questão da formação de palavras.
Em Portugal, na transição do século 18 para o 19, as tendências de criação literária recuperavam a estética da poesia clássica greco-latina. Os estudiosos da literatura denominaram o período «Neoclassicismo», ou «Arcadismo», graças à fundação da Arcádia Lusitana – grupo de poetas e eruditos seguidores dessa tendência ao clássico no fazer poético. Exatamente por essa recuperação dos clássicos, datam desse período as primeiras experiências de tradução da Ilíada, de Homero, para o português – embora a primeira tradução integral tenha vindo a lume apenas no fim do século 19, pelas mãos do brasileiro Odorico Mendes.
Aos nossos olhos, são muito semelhantes as correntes «francesa» do Neoclassicismo português, representada por Bocage, por exemplo, e a «latina», da qual Filinto Elísio é expoente. Ambas recorrem a recursos estéticos típicos da época. Contudo, há ao menos uma importante diferença entre elas – o cunhar de termos novos na língua a partir de radicais latinos e gregos, procedimento que a corrente «latina» procurava fazer. Muitos dos termos que esses poetas cunharam são, hoje, palavras oficiais em nossa língua.
A elocução intrincada e repleta de termos retirados diretamente do latim, ou construídos a partir de verbetes greco-latinos, é herança dessa «escola latina» iniciada por Filinto Elísio, ele mesmo tradutor de poesia latina. Também era característico da «escola» filintista um certo teor arcaizante do vocabulário – o uso de arcaísmos como «dões», «soer» e «petrina».
Vemos, portanto, que era recurso desse grupo recorrer tanto a processos de «atualização» da língua, criando palavras, como a recuperação de tradições, ao resgatar usos já perdidos, o que ampliava a quantidade de vocábulos em uso. Essas estratégias nos lembram muito o estilo de Guimarães Rosa, quando nos sentimos perdidos entre saber se um termo foi por ele cunhado ou resgatado dos rincões distantes e perdidos do passado da língua.
Barbarismos
O conceito de língua subjacente a quase todas as escolas literárias europeias da época era que a variedade é constituinte de beleza e qualidade linguísticas. Para essa corrente classicizante, cunhar novos termos e recuperar termos antigos era um meio de garantir tal variedade. Por meio desses vocábulos, os poetas e os escritores de prosa poderiam proporcionar uma gama mais diversificada de sons e, por conseguinte, tornar a língua superior, conforme o conceito de então.
Quanto à expressividade, havia uma percepção de que a Língua Portuguesa carecia de palavras «carregadas de valor semântico». Sentia-se falta de palavras para exprimir com exatidão termos e conceitos técnicos ou que demandassem precisão. Essa busca seria suprida pelos empréstimos do latim. Nos mais variados tipos de texto, os neologismos supririam a carência de termos expressivos e de rigor léxico no português.
O empréstimo de vocabulário latino e inserção de novos termos ao português não era restrito ao meio poético. A cunhagem de palavras ao modo latino, como «muri-cercada», e a introdução das próprias palavras latinas, como «conviva», eram consideradas um fator enriquecedor da língua de todos os falantes, não apenas dos poetas.
Para os adeptos[1] a esse recurso, criar algumas palavras e recuperar outras antigas ajudava a garantir diferenças de estilo, isto é, proporcionava mais palavras para cada tipo de elocução retórica – elevada, média ou baixa – conveniente à nobreza ou à vileza da matéria, da ação, das personagens.
Assim, pelo acesso a uma maior variação sonora, expressiva e estilística, a variedade de vocábulos garantiria a riqueza e o valor da Língua Portuguesa.
Os contra-argumentos dados ao grupo de escritores adeptos ao emprego desses termos são patentes na crítica da época – e, pasmem, há quem até hoje os sustente. De modo geral, percebemos que a desaprovação se sustentava no conceito de «linguagem pura», ou de «norma purista» da linguagem.
Os literatos se preocupavam ininterruptamente com a absorção de palavras e usos gramaticais estrangeiros pelo vocabulário português, considerados as mais das vezes «conspurcações» da língua portuguesa pura – daí serem chamados de «barbarismos». Como dissemos, a noção de que cada língua tinha um caráter único e específico era comum.
Ora, para aqueles literatos – dos mais puristas aos mais progressistas –, a absorção de vocábulos do latim ou do grego não era igual à de termos de línguas «vulgares» – as línguas não clássicas. Tomar empréstimos do latim e do grego era considerado «construção do português», desde que respeitasse o «gênio» da Língua Portuguesa (esse «espírito» de que falamos mais acima). Já o uso de termos de línguas modernas, ou vulgares, era considerado uma invasão de barbarismos, completamente alheios a esse «gênio».
O problema dos neologismos não era, portanto, fazer uma mera derivação – mas atrair termos que não consideravam condizentes com o «espírito» e a norma da Língua Portuguesa. Hoje, analogamente, brandem-se bandeiras de conservadorismo contra o «inimigo» imaginário que são as influências de outras línguas e considera-se «erro» o uso derivado das línguas dos povos originários e de povos africanos sequestrados.
Elipino x Odorico
Voltemos à Ilíada. Nas primeiras traduções da obra de Homero, há duas linhas verificáveis entre o fim do século 18 e o fim do 19 em Portugal:
A tradução que dá ênfase ao fato de a Ilíada ser um clássico: essa linha se submete à estética neoclássica de composição poética (versos decassílabos brancos, ausência de estrofes, sintaxe simples, etc.). É herdeira de Filinto Elísio (o que acarreta certa tendência «estrangeirizante» manifesta no cunhar de neologismos). Dela participam poetas hoje quase desconhecidos, como José Maria da Costa e Silva, Antônio Maria do Couto, Antônio José Viale, João Félix Pereira e, finalmente, o maranhense Odorico Mendes.
A tradução que dá ênfase ao fato de a Ilíada ser um épico: essa linha se submete à tradição épica de Portugal, a saber, a estética camoniana dos Lusíadas, admitindo caráter mais «domesticante» quanto à tradução. Dela participam, por exemplo, a Marquesa de Alorna e Mendes Leal Jr.
Sabemos que os epítetos – termos e expressões qualificativos tipicamente dados a personagens em Homero, como «dedirrósea» aurora e aqueus «de fina greva» – são frutos da composição e da transmissão orais das poesias. Os tradutores da linha que dá ênfase ao fato de a Ilíada ser um clássico, em menor ou maior escala, utilizam o recurso de cunhar neologismos ou a recuperação de termos latinos e gregos.
Diversos epítetos utilizados cerca de 40 anos antes da publicação das traduções de Odorico Mendes apresentam, senão traduções muito semelhantes, a mesma estratégia de tradução, que consiste na união de radicais greco-latinos ou portugueses para a formação de neologismos. Podemos ter uma ideia melhor desse recurso ao ler a invocação de abertura da Ilíada nas traduções de dois poetas – Elipino Duriense (período neoclássico português) e Odorico Mendes (herdeiro da mesma corrente, mas já do Romantismo):
Muitos dos termos cunhados por esses poetas estão dicionarizados hoje em dia, como «pulcrícomo» e «argentípede». São palavras que se tornaram parte da língua segundo instrumentos oficiais. O que era considerado «conspurcação» do português hoje é parte oficial dele.
A contribuição desses poetas para a manutenção da língua como processo vivo perdura até hoje. Por causa de Odorico Mendes, também Haroldo de Campos acolhe, ao traduzir em dodecassílabos a Ilíada, o expediente de cunhar epítetos a essa maneira. E é por causa de Haroldo de Campos que Trajano Vieira se integra a essa tradição, cunhando igualmente novos epítetos e dando continuidade a esse recurso estabelecido no distante período neoclássico.
Essa tradição nos faz relembrar o quanto somos devedores de poetas e escritores já esquecidos e distantes no tempo e espaço. Ao ousar criar e manter a língua em seu processo de constante renascimento – a contragosto dos puristas fiscais de línguas alheias –, esses autores deixaram sua marca inovadora. É também um convite ao reconhecimento de nosso pertencimento a tradições e à ousadia. Celebremos a língua indômita!
[1 N.E.(12/06/2019) – A autora escreve «adeptos a esse recurso» e «adeptos aos empregos», apesar de a regência de adepto ser construída com a preposição de («ser adepto de alguma coisa»). Note-se, porém, que a obra do escritor brasileiro Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) faculta algumas ocorrências de adepto associado à preposição a (cf. Corpus do Português de Mark Davies), sugerindo assim que este uso terá sido uma variante aceitável de «adepto de». Manteve-se, portanto, a regência apresentada pelo texto aqui transcrito, apesar do seu caráter insólito.]