« (...) O vocabulário total do Novo Testamento ronda as 9000 palavras, das quais cerca de 8100 já ocorrem na literatura grega anterior, desde Homero. (...) »
Há uma frase atribuída a João Guimarães Rosa, segundo a qual cada palavra é, na sua essência, um poema. Lembro-me sempre desta frase quando abro, como faço todos os dias, o Novo Testamento em grego, para lá ler o que me calhou debaixo dos olhos.
Há pouco abri o livro em Marcos 4:3-9. Dei-me conta de que, à excepção de dois substantivos, todos os substantivos colocados por Marcos na boca de Jesus nessa sequência sobre o semeador que saiu para semear ocorrem na Ilíada ou na Odisseia. Os dois substantivos que não ocorrem são báthos («profundeza», cuja primeira ocorrência conhecida é em Ésquilo) e petrôdes («lugar pedregoso», que ocorre pela primeira vez em Sófocles).
O vocabulário total do Novo Testamento ronda as 9000 palavras, das quais cerca de 8100 já ocorrem na literatura grega anterior, desde Homero. Algumas das palavras do Novo Testamento até já ocorrem em Linear B, na escrita dos tempos da Guerra de Tróia.
Em suma: só 10% do vocabulário total do Novo Testamento não pertence ao grego arcaico e clássico. Deve ser por isso que, para o helenista que conhece as palavras e a sua longa e fascinante história, ler o Novo Testamento em grego evoque sempre a tal frase de João Guimarães Rosa.
Aliás, eu iria mais longe do que Guimarães Rosa. No Novo Testamento, cada palavra vale por um poema.
Apontamento do classicista e professor universitário Frederico Lourenço no Facebook em 18 de setembro de 2024.