A propósito da crise mundial, alguns teóricos têm chamado a atenção para aquilo que apelidam de «desacoplagem da área financeira» da chamada economia real. Com este conceito pretende-se dizer que a finança criou, em gabinete, aplicações, na gíria chamam-se produtos, de tal modo complexos, na gíria chamam-se estruturados, e distantes da realidade das empresas e do mercado, que perderam a ligação à chamada economia real.
Perguntarão: o que é que isso tem que ver com a linguagem? Tem muito, porque a língua, as línguas, enquanto instrumentos de tradução do pensamento, acabam por reflectir esse distanciamento. Sem a tal desacoplagem não seria possível, por exemplo, uma das frases de uma notícia do Expresso, de 5 de Junho, que dava conta de que o Banco de Portugal cassara a licença para o exercício de actividade bancária a Paul Guichard, braço-direito de João Rendeiro no Banco Privado Português.
A frase é esta:
«Paul Guichard promoveu a criação de 12 offshores, sobretudo, ”com objectivos de alisamento ou window dressing de resultados e parqueamento de investimentos em veículos de private equity».
A frase é realmente notável e ilustra bem a desacoplagem ou o distanciamento do concreto de que se falava. Pela quantidade de termos ingleses mas sobretudo pelo nível de metáfora dos termos ingleses e portugueses percebe-se o tal nível de dissociação da realidade. A frase é seguramente ininteligível para muitos.
Embora, por formação, esteja longe, bem longe mesmo, da área económica e financeira, procuro acompanhar a evolução do mundo e estar atento ao que se passa à minha volta. Sem preocupações de exactidão e ensaiando uma tentativa de descodificação, que ajude à compreensão imediata do sentido da frase, creio que o que se pretende dizer não será muito diferente disto:
Paul Guichard promoveu a criação de 12 empresas sediadas em paraísos fiscais, como forma de ocultar prejuízos e investimentos realizados em empresas não cotadas em bolsa.
Ao contrário de outros, vejo sem preconceitos a importação, com ou sem aportuguesamento, de termos provenientes de outras línguas. Agradam-me os níveis de economia de escrita que muitos nos trazem e muitas vezes também de metáfora que me parecem, como neste caso, intelectualmente bastante estimulantes.
Embora reconheça que se trata de uma frase críptica, que reflecte o ponto a que chegou o nível de codificação da linguagem financeira, acho que com algum conhecimento da(s) língua(s) e apelando ao raciocínio abstracto se chega lá. Exceptuando o offshore – mas que até já caiu na linguagem comum – e o private equity – que admito ser uma expressão muito específica – consegue-se atingir o sentido da frase. E é sobretudo desafiante constatar e entender as transposições semânticas de termos ingleses e portugueses da linguagem corrente para a financeira.
Mesmo em relação ao offshore, literalmente, «fora da costa», se chega lá por extensão, ademais porque os offshore, ou «paraísos fiscais», zonas onde a tributação é mais baixa, se situam geralmente em ilhas, tais como as ilhas Bermudas ou as ilhas Caimão, tendo a palavra portanto uma correspondência directa com a realidade física de onde provém. Fica realmente de fora o private equity, muito embora se saiba que, na linguagem especializada, equity, literalmente, «equidade», é o capital de uma empresa detido em partes iguais pelos accionistas, daí a equidade, ou seja, a igualdade de tratamento, porque igual o capital; e private, literalmente, «privado», advém do facto de se estabelecerem acordos contratuais privados entre os investidores e as empresas, que não são negociados de forma aberta, pública, em bolsa, mas sim de forma mais restrita ou privada. No limite, pela etimologia, acabamos por chegar ao sentido último da expressão, por mais distante que ele já esteja da sua realidade original. Através da actividade de private equity investe-se em empresas de certa dimensão mas que ainda não estão cotadas em bolsa e precisam de capital para se alavancarem – cá está um verbo de grande expressividade visual, de que muitos não gostam, e que foi adoptado pela economia –, isto é, para se expandirem, para se desenvolverem.
Tudo o resto na frase, quando descascado, acaba também por se entender. Mesmo a elisão inicial – na verdade não se criaram doze offshore mas sim doze empresas ou contas offshore – é perceptível. Diz-se depois que estas empresas e/ou contas foram criadas com o objectivo de alisamento, o que é óbvio. Alisa-se um tecido para eliminar as rugas, aplana-se um terreno para eliminar as irregularidades. Ou seja, criando aquelas empresas/contas deficitárias nos tais paraísos fiscais, alisavam-se os resultados para consumo interno. O window dressing, que vem depois, acaba por ser redundante. Literalmente, «vestir uma janela», no fundo, colocar uma cortina para proteger, para ocultar ao exterior o que se passa dentro de casa, no caso, os prejuízos, e que não queremos que quem passa na rua veja ou conheça. Além de criarmos essas empresas e/ou contas para alisar as contas internas, escondendo os maus resultados, fizemo-lo para parquear os maus investimentos, ou seja, arrumá-los num parque, dissimulando-os entre os outros veículos e sobretudo retirando-os da estrada, onde são mais visíveis; e onde é que os vamos pôr? Noutros veículos – a alusão à mobilidade destes investimentos que são transnacionais – de private equity, ou seja, de empresas menos visíveis porque não cotadas em bolsa.
Porém, se a descodificação da fraseologia da finança é estimulante, como exercício, o seu uso no dia-a-dia pode criar uma barreira comunicacional, para muitos intransponível. Aliás, nem precisaríamos desta frase de jornal, quase caricatural, basta deslocarmo-nos a um banco para aplicar umas poupanças para se perceber que o que se disse acima, em maior ou menor escala, está disseminado. Tem-se dito até que muitas destas aplicações financeiras, pelo seu grau de complexidade, escaparam em grande parte ao entendimento de quem as comercializava e até mesmo ao controlo de quem as gizava, qual criatura ultrapassando o criador.
O uso corrente, para lá das comunidades profissionais restritas, do jargão das várias especialidades, de que este é um exemplo-limite, já gerou, nos países anglo-saxónicos, o chamado Movimento pelo Plain English que pretende, sob pena de nos enredarmos em diferentes teias, erradicar do dia-a-dia a linguagem excessivamente técnica e especializada. Sem cair no outro extremo, o da imbecilização ou infantilização pela simplicidade, creio ser bem necessário algo de semelhante também em Portugal.