Para muitos a epidemia que assola o planeta existe apenas de se ouvir falar (falar muito, diga-se). É uma realidade imaterial que só ganha sentido e consistência por meio de palavras. As palavras, agora mais do que nunca, assumiram o poder de materializar realidades e de as concretizar. Quem as ouve ou quem as diz acredita que a realidade que referem é tangível e verídica. Mas, para além deste poder, as palavras arrastam consigo traços que se distribuem por uma escala avaliativa que vai do muito negativo ao muito positivo. E esses traços vêm desvelar, como nunca, sentimentos. As palavras estão, neste momento, a controlar a realidade que os humanos vivem e a forma como a vivem.
As palavras a expressões começaram por arrastar os seus falantes para a esfera do negativo, associado a um leve receio. Entre elas vinham «novo coronavírus», «covid-19», surto, epidemia. Eram palavras que surgiam em eco, como se oriundas do fundo de um poço, e pareciam próprias de um filme de ficção. Aconteciam noutro mundo, longe de nós.
Porém, rapidamente, outras palavras tiveram a capacidade de arrastar os falantes para uma esfera negativa mais real, situando-os na zona do medo: pandemia, infetados, doentes, contágio, «novos casos», óbitos. As palavras mostraram que o que era distante e difuso, de repente, estava à nossa porta. Sim, já não eram palavras só deles, eram palavras também nossas.
E, de modo súbido e sem aviso prévio, as palavras decretaram a mudança radical das nossas formas de vida: «isolamento social», quarentena, «distância de segurança», luvas, máscara, «lavar as mãos», higienizar, «medidas de contenção», «medidas de mitigação», «estado de emergência».
Quando caímos em nós, já as palavras tinham crescido, organizando-se em inúmeros campos lexicais de conotação negativa, que passaram a controlar a nossa forma de ver o mundo e de nele viver. E novas avalanches começaram a surgir: no mundo do trabalho (teletrabalho, lay off, despedimentos, «despedimento coletivo», «redução de salários», desemprego…), no mundo da estatística («curva epidemiológica», pico, «crescimento da curva», «taxa de letalidade», «taxa de moralidade»…), no mundo da saúde mental (aflição, desmoralização, frustração, nervosismo, stresse, ansidedade…) Um mundo novo, distópico, chegou até nós por meio das palavras e instalou-se na nossa sociedade, nas nossas casas, dentro de nós.
Mas, são estas mesmas palavras que têm a capacidade de nos oferecer realidades positivas, arrancando-nos da esfera do pessimismo e do campo do medo. Elas vêm do mundo da medicina (anticorpos, imunidade, recuperação, vacina), do mundo da estatística («achatamento da curva», «desaceleração do crescimento», «ritmo de abrandamento»). E são estas palavras boas, carregadas de força positiva que convocam outras que passam a descrever as novas atitudes da população: respeitar, colaborar, obedecer, cumprir, sacrificar. A transformação a que assistimos mostra que são estas as palavras certas para este momento porque poderão ter o poder de nos trazer de «regresso à normalidade» e porque atraem sentimentos e atitudes fulcrais: coragem, serenidade, esperança, resistência, resiliência…
São as palavras que trouxeram uma realidade tão carregada de traços negativos que vêm para nos lembrar que ser humano é ser forte, que ser humano é resistir, que ser humano é vencer. E que, no final, será com palavras que diremos «Já passou. Está tudo bem!»