Gonçalo Neves explica por que razão o inglês comprehensive não deve ser traduzido por compreensivo, ao mesmo tempo que esclarece a etimologia latina destas duas palavras.
O termo comprehensivus não existia em latim clássico. A primeira referência conhecida provém da obra de Prisciano (Priscianus Caesariensis), um gramático latino que terá vivido no século VI da era cristã. Na pág. 147 desta edição das suas Institutiones grammaticae, a cargo de Augustus Krehl (1819), lemos o seguinte:
Quaedamenim e longam habent ante tum, ut olivetum, vinetum, coryletum, rosetum [...]. Quae sunt continentia vel comprehensiva [...] (Lib. IV, Cap. II, 12)
Ou seja: «Algumas [palavras] têm um e longo antes de tum, como olivetum (olival), vinetum (vinha), coryletum (avelanal), rosetum (roseiral) [...]. São continentes (continentia) ou abrangentes (comprehensiva) [...]».
Na p. 202 da mesma edição lê-se ainda o seguinte:
Sunt quaedam singularia voce, intellectu pluralia, quae etiam comprehensiva dicuntur, id est περιληπτικά, ut populus, exercitus, legio. (Lib. V, Cap. X, 55)
Ou seja: «Há algumas [palavras] que são morfologicamente (voce) singulares,mas semanticamente (intellectu) plurais, as quais também se chamam abrangentes (comprehensiva), isto é, περιληπτικά [em carateres latinos perileptiká], como populus (povo), exercitus (exército), legio (legião).»
Prisciano, portanto, recorre ao “neologismo” comprehensivus para traduzir περιληπτικός, termo com que os gramáticos gregos designavam os nomes coletivos, o que, aliás, está de acordo com um dos sentidos primordiais do verbo comprehendere («abranger, abarcar, conter»).
Esta aceção de comprehensivus ter-se-á mantido ao longo de toda a latinidade, como atestam vários exemplos, entre os quais o seguinte, da pena de São Tomás de Aquino (1225 – 1274), na sua obra In librum B. Dionysii De divinis nominibus expositio, consultada aqui:
Quinto, considerandum est quod ea quae sunt parva, parum comprehendere possunt, sed ipsa de facili ab aliis comprehenduntur; divinum autem parvum est comprehensivum omnium, sed est incomprehensibile ab omnibus. (Cap. 9, Lectio 1)
Ou seja: «Em quinto lugar, importa considerar que as coisas que são pequenas pouco podem conter (comprehendere), mas facilmente são contidas (comprehenduntur) por outras; o que é pequeno e divino, porém, contém todas as coisas (est comprehensivum omnium), mas não pode ser contido (est incomprehensibile) nem por todas elas».
É nesta aceção, aliás, que o termo continua a ser utilizado pelos latinistas modernos. Por exemplo, num glossário escolar latino-espanhol, da autoria de Iosephus Ioannes del Col, publicado em 1994 pelo Instituto Superior Juan XXIII em Buenos Aires, sob o pomposo título Vivae Latinitatis voces locutiones que e scriptis magisterii ecclesiastici collectae et cum sermone hispano comparatae («Termos e locuções de latim contemporâneo, extraídos das obras do Magistério da Igreja e traduzidos em espanhol») e consultado aqui, a expressão examen comprehensivum é traduzida por examen global de todas las disciplinas (p. 142).
Já na wikipédia em latim, num artigo sobre o nosso concelho da Maia, encontro a seguinte descrição da rede escolar do concelho:
Maia comprehensivum praescholare, educationis primariae et educationis secundariae rete habet («A rede escolar da Maia abrange o ensino pré-escolar e o primeiro e segundo ciclos»).
A expressão utilizada (comprehensivum rete) corresponde exatamente à que se encontra na versão inglesa do mesmo artigo, da qual certamente foi traduzido o texto latino: Maia has a comprehensive network of pre-school, primary, andsecondaryeducation.
No entanto, apesar desta aceção de comprehensivus («abrangente», «continente», «inclusivo»), que foi, de resto, herdada pelo inglês comprehensive, o termo latino terá conhecido, numa fase mais tardia, outros matizes, qua acabaram por conduzir ao significado que o termo apresenta em português e noutras línguas neolatinas («que denota compreensão»).
Por exemplo, no Lexicon Recentis Latinitatis, publicado pelo Vaticano em 2003, o vocábulo italiano comprensivo é traduzido por uma série de termos clássicos (benignus, liberalis, benevolus) mas também por comprensivus, que o lexicógrafo diz ter recolhido no Thesaurus Linguae Latinae. Não encontrei, porém, o termo na edição eletrónica do Thesaurus. O que encontrei, sim, foi comprehensivus, a que é atribuído o sentido de collectivus.
Seja como for, não foi com este sentido que o termo entrou em português, pela pena do Padre António Vieira (1608 –1697). O exemplo mais antigo que consegui apurar remonta a 1643, data em que o conhecido jesuíta proferiu o primeiro Sermão do Mandato (1643), cujo texto é reproduzido na íntegra numa Dissertação de Mestrado em Estudos Ibéricos, da autoria de Regina Maria Martins da Costa, sob o título As finezas do Amor – de António Vieira a Sor Juana Inês de la Cruz, apresentada no Departamento de Letras da Faculdade de Artes e Letras da Universidade da Beira Interior, na Covilhã, em 2009, e no qual se encontra o seguinte trecho:
«Os tormentos [de Jesus Cristo] em si mesmos eram acerbíssimos, e fazia-os incomparavelmente maiores a delicadeza do sujeito, a viveza da apreensão, a tristeza suma, bastante ela só a tirar a vida, e, sobretudo, o conhecimento compreensivo da injúria infinita cometida contra Deus naquele e em todos os pecados do género humano.» (página xxvi)
No terceiro sermão de Maria Rosa Mística, publicado em 1686, e cujo texto integral encontrei aqui, António Vieira serviu-se novamente do termo em questão:
«Contempla o Eterno Padre dentro em si mesmo a essência, os atributos, as perfeições e todos os outros mistérios da divindade, que só ele compreende, e desta contemplação compreensiva, com que Deus cuida em si, e se conhece e vê a si, nasce o Verbo Divino, que é a Palavra de Deus e todo o seu dizer [...]»
Rafael Bluteau (1638–1734) no seu famoso Vocabulario Portuguez e Latino, cita os dois exemplos de Vieira e elabora o seguinte verbete, que recolhi aqui:
comprehensîvo. Faculdade comprehensiva. Conhecimento comprehensivo. Aquelle, que chega a comprehender. Cognitio, quâ aliquid comprehenditur [«Conhecimento, pelo qual algo é compreendido»]. Desta contemplaçaõ{ Comprehensiva, com que Deus cuida em si. Vieira. Tom. 5. pag. 94.} {O conhecimento Comprehensivo da injuria infinita. Vieira, ibid. pag. 363.}
António de Morais Silva (1755 – 1824), no Tomo I do seu Diccionario de Lingua Portugueza (p. 424 da 4.ª edição, 1831) apresenta uma definição mais rigorosa do vocábulo, ainda com base nos referidos exemplos de Vieira:
«COMPREHENSÍVO, adj. Da natureza da comprehensão, por conhecimento perfeito, e adequado: v.g. contemplação comprehensiva; conhecimentocomprehensivo. Vieira.»
No entanto, noutro verbete (AMPLO, p. 118), Morais dá o seguinte exemplo:
«Sentido mais amplo; i.é. mais comprehensivo, ou extensivo [...]»
Ou seja, neste passo, escapou-se-lhe a pena para o latim!
Passemos agora à situação lexicográfica atual de compreensivo. O Dicionário Eletrônico Houaiss apresenta o seguinte verbete:
«■ adjetivo
1 pleno de entendimento ou consciência
Ex.: a percepção c. de uma injustiça cometida
2 apto a compreender os outros; que demonstra compreensão, simpatia, boa vontade
Ex.: essa criança carece de um pai c.
3 que admite com facilidade o ponto de vista alheio
Ex.: um patrão muito c.»
A segunda e terceira aceções, julgo eu, são atualmente as mais frequentes, sendo a primeira a original, a que remonta a Vieira (note-se o exemplo apresentado) e a única que figura em Bluteau e Morais. Em pé de página, para que conste, figura ainda a seguinte advertência: «o emprego deste adjetivo no sentido 'abrangente, amplo' (uma teoria c. do desenvolvimento humano) é anglicismo semântico a ser evitado».
Eunice Sanders, na sua útil obra Avoid pitfalls in English: como evitar as ratoeiras do inglês (Sá da Costa, 1983), apresenta o seguinte verbete (p. 45):
«COMPREHENSIVE Se bem que este termo possa ter o significado de «compreensivo», poucas vezes se emprega neste sentido. O significado mais vulgar é «inclusivo».
Comprehensive insurance./ Seguro contra todos os riscos.
A comprehensive school é uma escola que recebe todos os alunos sem haver qualquer exame de entrada.
O termo «compreensivo» traduz-se geralmente por understanding.»
No mesmo sentido aponta a obra Mapeando a Língua Portuguesa através das Artes, da autoria de Patricia Isabel Sobral e Clémence Jouët-Pastré (Hackett Publishing Company, 2015), onde se lê que compreensivo é «falso cognato» de comprehensive e se recomenda «abrangente» como tradução (p. 223).
No portal brasileiro Tecla sap lê-se a seguinte recomendação:
«Embora comprehensive também signifique "compreensivo", esse não é o sentido em que o adjetivo costuma ser usado em inglês. Assim, dê preferência às seguintes sugestões de tradução: "amplo", "abrangente", "extenso", "completo" etc.»
Nesse sentido, o portal apresenta o seguinte exemplo de tradução: The exhibition is thought to be the most comprehensive study of Aztec culture ever mounted («Acredita-se que a mostra é o mais completo estudo da cultura asteca que já foi realizado»).
Refira-se mais um portal brasileiro (UOL) em que figura uma advertência muito semelhante:
«Muito cuidado com o adjetivo comprehensive. Ele está muito longe de significar "compreensivo". É empregado com os significados de "abrangente"; "amplo"; "completo"; "extenso"...»
(Seguem-se três exemplos muito bem traduzidos, cuja consulta recomendo.)
No entanto, há obras que mostram maior abertura (ou laxismo, dirão outros, nos quais me incluo) a respeito deste anglicismo semântico.
Por exemplo, na obra Ciências sociais, complexidade e meio ambiente: interfaces e desafios, organizada por Elisabete Matallo Marchesini de Pádua e Heitor Matallo Júnior (Papirus Editora, 2008), lê-se o seguinte trecho:
«O que é complexo não é o inalcançável pelo nosso pensamento, não é o incompreensível ou complicado. Complexo — com plexus, plexus «abraço», — é o que envolve, é abrangente.» (p. 53)
Este trecho remete para uma nota de pé de página, na qual se lê que:
«Na tradição da língua inglesa, foi criado o termo comprehensive, cuja tradução é «abrangente», mas tem sido utilizado na versão compreensivo(a), com o mesmo significado original. É uma relação interessante com o tema da complexidade.»
Outro exemplo: neste artigo da Revista Brasileira de Orientação Profissional, sob o título “Educação para a Carreira: concepções, desenvolvimento e possibilidades no contexto brasileiro”, lê-se que «Nos Estados Unidos, Gysbers e Lapan (2001) elaboraram um programa de orientação abrangente/ compreensivo (comprehensive) [...]».
Por outro lado, esta tese de doutoramento em Ciências da Educação, na especialidade de Psicologia da Educação, apresentada por João Pedro Marceneiro Gasparna Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra em 2014, apresenta o seguinte título: Os desafios da autonomização: estudo compreensivo dos processos de transição para diferentes contextos de vida, na perspetiva de adultos e jovens adultos ex-institucionalizados. Fica a dúvida, que só poderá ficar desfeita caso se leia a tese na íntegra, sobre o que quererá dizer «estudo compreensivo» neste caso. Será «estudo exaustivo» (supondo que se trata de um anglicismo semântico)? Será «estudo interpretativo», como no caso da verstehende Soziologie de Max Weber (1864 –1920), geralmente conhecida por «sociologia compreensiva»? O principal problema decorrente da eventual “adoção” deste anglicismo semântico é mesmo uma inevitável confusão de conceitos e o surgimento de inúmeros equívocos e interpretações erróneas...
Para a confusão semântica contribuem igualmente verbetes com este da Infopédia:
«com.pre.en.si.vo
adjetivo
1. (indulgente) understanding;
um patrão muito compreensivo a very understanding boss
2. (que inclui) inclusive; all-embracing
Não confundir com a palavra inglesa comprehensive, que significa "exaustivo", "abrangente".»
Repare-se na incongruência: primeiro diz-se que compreensivo, além de understanding, significa também inclusive, all-embracing e, logo a seguir, pede-se para não confundir com comprehensive, que significa «exaustivo», «abrangente»...
Bem faz este portal de contabilidade brasileiro, em que o conceito comprehensive income é traduzido, e bem, por «resultado abrangente».
Resumindo: apesar do exemplo do latim e de certa “poluição semântica” deste vocábulo em artigos de índole técnica mais recentes, escritos em português de ambos os lados do Atlântico, estou em crer que é curial evitar que comprehensive invada o habitual campo semântico de compreensivo, pois dessa contaminação não resultará nenhum benefício para a língua, antes pelo contrário. Importa igualmente não transmitir a falsa ideia de que comprehensive deve verter-se automaticamente por «abrangente». Um comprehensive dictionary, por exemplo, não é um dicionário «abrangente», mas sim «completo», ou melhor ainda, «grande», como o Grande Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora (2004), o qual, infelizmente, apresenta como primeira aceção de compreensivo a seguinte: «que compreende ou pode compreender, abranger ou conter» (p. 366)...