«Ninguém tem de ler ou ouvir o que produzimos com benevolência, buscando entender – apesar de nós mesmos – aquilo que pretendíamos comunicar»
Quando aprendemos sobre sintaxe, é comum ouvirmos que o advérbio (ou o adjunto adverbial, ou o sintagma adverbial, ou como você quiser chamar aquela palavra ou conjunto de palavras de natureza adverbial) normalmente vem depois do verbo e de seu complemento, ao final de tudo; ouvimos também que ele pode ser movimentado para qualquer lugar da sentença sem nenhum problema.
Vejamos um exemplo comum desse tipo de afirmação:
Eu comi uma maçã hoje.
Hoje eu comi uma maçã. (ao gosto do gramático, com ou sem vírgula depois do hoje)
Eu hoje comi uma maçã.
Eu comi hoje uma maçã. (ao gosto do gramático, com o hoje entre vírgulas ou não)
Nas sentenças acima, o hoje pôde ocupar qualquer uma das posições existentes na estrutura da oração. Ele foi, de fato, passível de ser movimentado para qualquer lugar. O estudante aprende isso como sendo uma regra gramatical, vê um exemplo, fica convencido, assume essa verdade absoluta para a vida e vai embora, feliz e contente, crente de que aprendeu alguma regra fundamental e absoluta da vida. Ledo engano.
Faz um tempinho, vi um reels com a seguinte legenda: «Chico descobre que tá milionário com bitcoin ao vivo.» O vídeo era um recorte de uma participação em podcast do influencer Chico Veiga, também conhecido como Chico Moedas – para quem não associou o nome à pessoa, é aquele tal Chico da música da Luiza Sonza, aquele mesmo que foi acusado pela cantora de tê-la traído.
(Mas vamos voltar ao ponto central da conversa, porque a vida das celebridades não é o foco deste texto.)
Na legenda do vídeo, o termo «ao vivo» é claramente de natureza adverbial; tanto é que, inclusive, poderia ter sido trocado por um advérbio prototípico como “hoje”, “agora” ou outro termo do tipo. Só que, do jeito que a legenda do vídeo foi escrita – ressalte-se, seguindo a conhecida regra gramatical –, o “ao vivo” perdeu totalmente seu sentido de uso e ficou deslocado, criando uma estrutura final mal construída – ou, para dizer o mínimo, ambígua e passível de uma interpretação equivocada.
O fato de o «ao vivo» ter sido colocado ao final de tudo fez com que ele pudesse ser confundido com um termo de natureza adjetiva que qualificaria bitcoin, como se “bitcoin ao vivo” fosse um tipo específico de bitcoin. A distância de «ao vivo» do verbo a que ele se liga, “descobre”, criou as condições para que presenciássemos o surgimento de mais uma criptomoeda: o “bitcoin ao vivo”. Naturalmente, esse não era o sentido da legenda, mas o problema é que a forma como o texto foi construído permite que cheguemos a essa interpretação.
Alguém poderia argumentar e dizer que seria “forçar a barra” entender o texto desse jeito, já que o contexto faria compreendermos que ele descobriu ao vivo que estava milionário. Bem, não tem outra forma mais educada de dizer: quem pensa assim, pensa errado. Se construímos nossos textos de forma ambígua, mal estruturados ou com problemas de coerência, a culpa é nossa, apenas nossa. Ninguém tem de ler ou ouvir o que produzimos com benevolência, buscando entender – apesar de nós mesmos – aquilo que pretendíamos comunicar.
Exemplos como esse servem para mostrar que as regras gramaticais, pensadas de forma abstrata e desconexas, nem sempre vão nos ajudar com a boa escrita da língua portuguesa e não raramente vão nos colocar em alguns apuros. As regras existem e devem ser seguidas, isso é claro, mas elas precisam ser refletidas e confrontadas – ou, do contrário, estaremos diante de situações como a da legenda do vídeo: totalmente certa no quesito gramatical; totalmente errada nos quesitos compreensão e qualidade do texto. Servem ainda para nos mostrar como precisamos estar atentos e vigilantes para que nossos textos sejam bem escritos, expressem da maneira mais clara e fiel aquilo que pretendemos e permitam ao leitor/ouvinte uma boa experiência de comunicação.
É por isso que um bom estudante ou profissional da língua precisa conhecer bem as regras gramaticais, mas precisa mais ainda saber como e quando usá-las de maneira produtiva, tendo como objetivo usar dos recursos da língua da melhor forma possível dentro do contexto em que está. Sem isso, aquele que fala ou escreve se torna um robô, uma máquina inerte, incapaz de perceber o que está diante dele mesmo e grita por atenção.
Publicação de 27 de abril no mural Língua e Tradição (Facebook).