Um despacho da EFE informava, há cerca de um mês, o seguinte: «Dois senadores chilenos, tradicionais antagonistas políticos, deixaram de lado diferenças e aderiram a uma iniciativa espanhola para salvar palavras em "perigo de extinção", com o objectivo de enriquecer o idioma.»
Subordina-se a campanha chilena ao mesmo lema da espanhola, «apadrinha uma palavra». Devem os padrinhos ser «políticos e líderes de opinião», obrigando-se todos e cada um deles a utilizar pelo menos três vezes por ano o vocábulo cuja reentrada em circulação se está a patrocinar.
Em princípio, apoio quaisquer intervenções cívicas e culturais objectivando melhorar o que quer que seja. O meu problema começa quando dou por mim a duvidar da consecução de resultados. Lembro-me de uma campanha para promover a leitura, levada a cabo há alguns anos, cuja palavra de ordem era: «Leia, vai ver». A frase até era boa, mas terá tido algum apelo, e mesmo significado mínimo, para quem, inteiramente alheado de leitura, jazia na perfeita ignorância das razões pelas quais se afirmava «ler é ver»? A minha dúvida não tira força à posição contrária, a quem acredita que, apesar de tudo, o melhor é fazer campanhas. Mais vale tentar do que permanecer sossegadamente à espera de que as coisas vão chegando ao sítio — e sempre a sítio melhor do que aquele de onde saíram.
A ideia de «salvar palavras em perigo de extinção» suscita algumas ponderações, suponho eu. Deve lembrar-se, antes de mais, que qualquer língua, porque organismo vivo, tem sempre palavras periclitando nas fronteiras da desaparição. Algumas efectivamente desvanecem-se em horizontes remotos, transformam-se em arcaísmos, mas não creio serem esses a preocupar os espanhóis, criadores da campanha, e os chilenos, seus adoptantes. O que penso estar na mente de uns e de outros é a queda no uso de vocábulos disponíveis no léxico actual do espanhol. Trata-se de ameaça (mais: de uma realidade) que parece pender sobre muitas línguas, inclusivamente a nossa, se atendermos ao que se pode ler e ouvir em diferentes quadrantes do quotidiano.
Diga-se, em abono da verdade, o óbvio: qualquer usuário de qualquer língua corre o risco de perder capacidade léxica, se não estiver em alerta constante. E só lamento dizer que um tal percalço não está reservado apenas aos de poucos estudos. Mesmo os que passaram por estudos superiores, os que, com menos estudos, têm hábito de ler de tudo um pouco, mesmo esses arriscam-se a ver apertar-se o espaço verbal disponível, num processo lento e insidioso de que uma pessoa pode permanecer totalmente inconsciente.
Mas há uma prevenção, a mesma, aliás, que conhecemos para manter saúde física: por um lado, é obrigatória uma boa alimentação (e com isso metaforizo a leitura), por outro, é imprescindível o exercício. Temos de pôr as palavras a mexer-se, tal como fazemos, ou deveríamos fazer, ao nosso corpo, para o manter em forma.
O abandono de palavras que ainda integram, de pleno direito, o léxico actual de uma língua (por essa razão constando de dicionários correntes) é precedido de alguns sintomas que servem, ou deveriam servir, de alerta geral. O mais importante desses sintomas, porque absolutamente recorrente e documentável no dia-a-dia da leitura de jornais e de revistas, é o fechamento do leque significativo de um vocábulo.
Cada vez mais, um cada vez maior número de pessoas, até com responsabilidades de escrita, parece ignorar que um vocábulo pode ter mais de uma acepção, com frequência tendo, mesmo, muitas acepções próprias, registadas como tais em dicionários. São sentidos perfeitamente normais em determinado estágio de uma língua (embora tenham sido, anteriormente, sentidos figurados).
A convicção de que a cada termo corresponde sempre um único significado revela-se na epidemia de aspas que assola a imprensa periódica. Já vi, e ao leitor também não terá escapado, o verbo bater colocado entre aspas em enunciados como: «A equipa X "bateu" a equipa Y no jogo de ontem.» O destaque, entre aspas, do verbo parece denunciar que quem escreve só considera como rigorosa uma acepção do verbo bater — «dar pancada em» — considerando como desvios de obrigatório destaque todas as outras acepções.
Mas basta abrir um dicionário qualquer, digamos o Dicionário Universal da Língua Portuguesa, para verificar que assim não é. Para além de «dar pancada em», bater significa, de pleníssimo direito, «abater; derrotar; vencer; diminuir o volume de; cunhar moeda; percorrer, explorar; agitar (as asas); remexer». Como se não bastasse, ainda temos «ir de encontro a; dirigir-se para; soar».
Sem necessidade de recurso a aspas ou a quaisquer sinais de destaque gráfico, o leitor e eu estamos perfeitamente à vontade para dizer que o Sporting bateu o Benfica, ou vice-versa; que um explorado bateu o território da Antárctida; que o pintassilgo, apanhando aberta a porta da gaiola, bateu asas e sumiu, e você, entretanto, não deu por nada, pois estava ocupada, à banca da cozinha, batendo natas para a sobremesa e se lembrando do dia, já antigo, em que o seu primo, ou tio, ou conhecido, bateu para outro lado qualquer, à cata de melhor vida.
Entre o bate-natas e o remexe-lembranças, você distraiu-se. Bateu com a cabeça no armário de mogno, madeira dura como só ela. Para toda desgraça havendo consolo, bateu-lhe rápida, na ponta da língua, a palavra castiça, de extraordinária eficácia catártica. Cinco letrinhas apenas, que valem cinquenta mil. Aliviada, você regressou à banca e à sobremesa.
Maria Lúcia Lepecki
Super Interessante
publicado originalmente na revista Super Interessante