Dentro daquela lógica de dividir o mundo entre dois tipos de pessoas, as palavras "difíceis" fazem um bom trabalho.
Infelizmente, nos dias que correm, e pelo menos no que a Portugal respeita, a desproporção entre os grupos chegou ao ponto de um deles estar em vias de extinção. Que é como quem diz decesso. Sabia o caro leitor, antes de ler estas linhas, o que quer dizer decesso?
Calculo que não. É uma palavra quase banida do linguajar corrente, apesar de ouvirmos as suas versões francesa e inglesa ("decés" e o verbo "to decease") todos os dias nos filmes. Decesso é a minha "nova palavra", desde que a ouvi, há dias, num debate na RTP-N, dita por um advogado. Foi com um entusiasmo infantil, de criança que aprende a juntar as letras, que a repeti e partilhei com uma série de amigos e colegas. Por acaso no mesmo dia em que constatei que em dezenas de pessoas só três sabiam o que quer dizer esparadrapo (pano com unguento, penso). A maioria retorquia a pergunta: "Es-quê?". Um ou dois nem o significado de "unguento" vislumbravam. O mesmo quanto a tergiversar (hesitar, fugir ao tema), ou estultícia (estupidez). Ou quanto a uma palavra como transporte também querer dizer êxtase ou entusiasmo.
Isto para concluir o quê? Que há um acervo (grande quantidade) de palavras que nunca são usadas e de significados que se perderam.
Que o arroubo da língua e dos seus infinitos cambiantes gasta os seus últimos prosélitos, cujo culto sincero se confunde cada vez mais com arrogância ou barroquismo. Num país que se diz de poetas, as palavras morrem assim, sem arauto nem enterro, no fundo de um baú onde já ninguém as procura.
Uma tragédia muda, portanto.
texto publicado na coluna Contra os canhões do “Diário de Notícias” de 2 de Março de 2007