Reflexão de Ana Sousa Martins sobre a necessidade de estudos sobre a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, capazes de irem da textualização à substância dos vocábulos que constroem a obra (texto transmitido no programa Páginas de Português de 8/12/2013).
A importância da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto na literatura, cultura e historiografia portuguesa é largamente reconhecida e celebrada de muitas maneiras.
Em 2010 celebraram-se os 500 anos do nascimento de Fernão Mendes Pinto; todos os anos é atribuído o prémio Fernão Mendes Pinto a uma tese de mestrado ou doutoramento; em 2009 a Bertrand fez uma reedição belíssima da adaptação de Aquilino Ribeiro sobre a Peregrinação; o ano passado [2012] saiu uma obra de ficção, O Corsário dos sete Mares, de Deana Barroqueiro, com base no que não se sabe nem nunca se há-de saber sobre a vida de Fernão Mendes Pinto; este ano saiu o relato de viagem Na senda de Fernão Mendes Pinto, de Joaquim Magalhães de Castro. Não posso deixar de lembrar também Por este rio acima, álbum de Fausto Bordalo Dias, um marco na história da música portuguesa.
Na verdade, Peregrinação fascina pela aventura extraordinária, excessiva, que aí se relata, a diversidade de povos, costumes, religiões, e geografia das partes da Índia, Malaca, Samatra, Java, China, Macau, Japão, à mistura com descrições técnicas da arte de marear e de abalroar navios, enfim, os negócios feitos, as habilidades diplomáticas, a própria personagem de Fernão Mendes Pinto, o «coitado de mim».
Há episódios, como o do «mar da noiva» ou o da «ilha dos ladrões», que só ainda não deram nenhum filme de Holywood, porque os americanos ainda não toparam com nenhuma tradução da Peregrinação, certamente. Porque o reconhecimento internacional do valor da obra ainda não se fez, de facto. Esta é aliás uma motivação declarada por todas as ações em prol do estudo e divulgação da Peregrinação.
Mas apesar disto tudo, o que é facto é que ler, ler, quase ninguém leu a Peregrinação. É exatamente isso que é dito no texto introdutório do volume organizado por Maria Alzira Seixo e Christine Zurbach com o título O Discurso Literário da Peregrinação. Diz-se aí: «A importância literária da Peregrinação é unanimemente enaltecida, mas poucos a estudam e quase ninguém a lê».
E isto apesar da edição da Peregrinação da Relógio d’Água, saída em 2001, vir com atualização ortográfica, o que torna o texto bem mais fácil de ler.
O que se ganha com a leitura direta do texto em detrimento da leitura de textos, ficcionais ou não, sobre a Peregrinação?
Ganha-se a experiência direta de uma figuração do discurso extremamente original, despretensiosa, puramente expressiva; por exemplo, há uma passagem em que os marinheiros do junco de António de Faria estão de vigia e às tantas diz-se «e parecendo-nos na calada do remo que podiam ser inimigos do dia passado, disse aos soldados: Senhores! É ladrão que nos vem acometer!»
Ou então, um outro exemplo, há uma cena em que um barco de cristãos é atacado pelo grande inimigo dos portugueses, o corsário Coja Acém, em que alguns portugueses conseguem fugir num pequeno barquinho, e às tantas diz-se: «e fugindo nesta manchua por entre a estacada e a pedra, nos fomos sempre cosendo com os penedos».
Mas também, e é isso que eu quero relevar, ao ler a Peregrinação ganha-se uma sensibilidade, um olhar especial sobre as palavras e o percurso que elas fazem ao longo dos séculos até aos dias de hoje. Por exemplo, quando aparece pela primeira vez em cena António de Faria, Fernão Mendes Pinto diz que a função dele é fazer um certo negócio com um rei local que afinal, mais do que amizade ou lealdade, era esse negócio tudo o que mais lhes interessava e então diz-se: «porém esta tenção vinha rebuçada com uma carta a modo de embaixada». Poucos conhecem o verbo rebuçar, significa «velar», «esconder» ou «encobrir». Mais frequente é a expressão «sem rebuço», e, bom, e então percebemos donde vem a palavra rebuçado.
Mas enfim o que quero afinal dizer com isto tudo é que também está por fazer uma análise linguística da Peregrinação, não só não só uma análise histórica, não só uma análise cultural, mas uma análise do discurso de Fernão Mendes Pinto, que leve a ler a obra pelo lado dos pormenores da textualização, até à delícia das sílabas, como disse Eugénio de Andrade.