Uma reflexão — publicada no semanário Expresso de 2/07/2011 — sobre a nova acepção dada à palavra reforma, nestes tempos em que, em nome da crise e da austeridade económica que varre em particular Portugal e os demais países periféricos da União Europeia, o que está a ser aplicado está a pôr em causa precisamente o que foram as verdadeiras reformas ao longo dos tempos.
reforma, s. f. 1. acção ou efeito de reformar 2. mudança introduzida em algo para fins de aprimoramento e obtenção de melhores resultados; nova organização; nova forma; renovação […], melhoramento introduzido num âmbito moral ou social (in Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2003).
Reformas, no sentido preciso do termo e da sua inerente conotação positiva, foram as medidas do Marquês de Pombal, no séc. XVIII, que permitiram o desenvolvimento da indústria, da agricultura e da viticultura nacionais, assim como a criação de escolas e museus, em Portugal, no Brasil e no Oriente, por exemplo.
Reformas, no pressuposto da inevitável mudança e melhoria das condições de vida das pessoas, trouxe-as a I República, quando, por exemplo, introduziu no país o ensino infantil e tornou o ensino primário obrigatório e gratuito para as crianças entre os 7 e os 10 anos. Ou quando, em 1911, estabeleceu a obrigatoriedade de um dia de descanso semanal; e, mais tarde, em 1919, as oito horas de trabalho diário e as 48 horas de trabalho semanal.
Verdadeiras reformas protagonizou-as igualmente Marcelo Caetano nos últimos anos do Estado Novo. Foi o que aconteceu com o alargamento das pensões aos trabalhadores rurais ou do direito de voto e da actividade sindical e política, ou com o próprio abrandamento da censura. Ou com a chamada «reforma Veiga Simão». Ou, ainda, com o lançamento de grandes obras públicas como o porto de Sines e a barragem de Alqueva. Foi a chamada «primavera marcelista», que ensaiou uma «mudança [i. e. reformas, melhorias] na continuidade [do regime salazarista]», na expressiva definição de Marcelo Rebelo de Sousa.
Reformas, e importantes, aconteceram também por via dos vários fundos comunitários acedidos com a entrada do país na CEE, hoje União Europeia. Foi com eles que foi possível “reformar” o país. Foram as melhorias alcançadas nestes últimos 25 anos: da Ponte Vasco da Gama à modernização de toda a rede viária nacional, do CCB à Casa da Música, do Erasmus às políticas de emprego e formação profissional. Ou na educação, assim como na investigação científica.
O seu contrário é o que decorre das presentes medidas de austeridade — as já em vigor e as que ainda vêm aí — resultantes do pedido de ajuda externa a Portugal. Acaso serão «reformas», mesmo, a redução drástica da rede escolar e do Serviço Nacional de Saúde, o corte nos salários da função pública e nas reformas, a «agilização» dos despedimentos ou o aumento exponencial dos impostos?
E desde quando se pode chamar «reformas estruturais» à receita-preço do resgate da troika ao endividamento do país — quando se trata, precisamente, de um violento «apertar do cinto» dos portugueses?
É verdade que uma reforma do que quer que seja implica, à partida, uma mudança, uma «nova forma». O que é bem diferente do seu uso indiscriminado para toda e qualquer situação e para toda e qualquer mudança — quando a própria etimologia da palavra aponta, necessariamente, para uma melhoria.
Não foi isso mesmo, afinal, o que ocorreu na Europa no último meio século (a regulamentação do horário de trabalho, as férias pagas e a introdução de previdência social, etc., etc.)… até às ditas «reformas» actuais?
In Expresso de 2/07/2011.