«É um facto, e este exemplo da Adidas é bem representativo, que a generalidade dos órgãos de comunicação social está alinhada com esta nova nomenclatura liberal.»
A Adidas dispensa cerca de 300 colaboradores na Maia devido a «mudanças na estrutura organizacional» da empresa, que vai deslocar serviços para fora de Portugal. Esta é a entrada de uma notícia, que vem da Lusa e que está a ser partilhada, praticamente na íntegra, pela generalidade da imprensa, estações de rádio e de televisão. Também no PÚBLICO a notícia foi publicada mas, a seu favor, diga-se que com um título não eufemístico: Adidas despede 300 trabalhadores na Maia e leva serviços para fora de Portugal.
Quem presta o seu trabalho a um empregador chama-se trabalhador. Chamar-lhe colaborador é uma operação de charme, uma aparente promoção do seu estatuto à igualdade ou horizontalidade relativamente aos empregadores. Um colaborador é aquele que ajuda a empresa a atingir as suas metas em vez de estar focado em cumprir as suas tarefas. Estes são os significados encerrados na palavra colaboração. Sucede que aquela igualdade ou horizontalidade não existe numa relação de trabalho e não há operação de charme que mude a essência desta relação.
Dispensar também não tem o mesmo significado que despedir. Dispensar significa ceder ou não precisar. Significa também conceder dispensa ou desobrigar. Significados muito diferentes de despedir, cuja definição e tramitação está prevista no Código do Trabalho, ao qual, qualquer dia, teremos de chamar Código da Colaboração.
Aparenta estar aqui em causa um tratamento linguístico mais gentil para com os trabalhadores. Por um lado são tratados como se não fossem subordinados mas sim pares ou cooperantes e, por outro, já não passam pelo processo carregado do despedimento e são meramente dispensados. É de facto outra leveza.
Mudam as palavras que se usam para chamar as coisas, mas as coisas continuam a ser exatamente o que são. Na Maia o que está a acontecer não é a dispensa de 300 colaboradores, mas sim o despedimento coletivo de 300 trabalhadores.
A pergunta que tem de ser feita é: quem é beneficiado com este tratamento linguístico? Serão os trabalhadores?
No conceito de trabalhador estão contidas todas as garantias e direitos que demoraram séculos a conquistar. As conquistas laborais implicaram processos demorados e complexos. O que hoje temos como adquirido – como a semana das 40 horas, o direito a férias remuneradas ou a proteção em caso de acidente de trabalho – não foi fácil de arrancar aos empregadores. A cada uma das conquistas resistiram o máximo que puderam; foram precisas manifestações, negociações e greves. Não se diga que, nestas lutas, estavam todos no mesmo lado ou a fazer esforços para um mesmo fim. Isso é pura ficção. Foi sempre próprio, da relação de trabalho, interesses conflituantes e não será a linguagem a mudar isso.
Se os empregadores pretendem enaltecer os seus trabalhado têm meios exímios para o fazer: o cumprimento da legislação do trabalho antes de qualquer outro. Se acharem que querem fazer mais, podem sempre proceder a aumentos salariais e à melhoria das condições de trabalho. Mudar-lhes o nome é uma pura armadilha: imprime uma conotação negativa à designação dos titulares de direitos fundamentais que têm de ser respeitados e cumpridos precisamente pelos empregadores.
É um facto, e este exemplo da Adidas é bem representativo, que a generalidade dos órgãos de comunicação social está alinhada com esta nova nomenclatura liberal. Noticiam um despedimento coletivo usando uma linguagem que nos remete para o universo do team building e do empowerment. Sopram ventos de modernidade nas empresas; sonham com unicórnios e repudiam a clássica relação de hierarquia. Mas, quando as coisas correm mal ou quando simplesmente convém, alguém sobe para o topo da hierarquia e unilateralmente exclui quem está a mais. Acaba-se logo a horizontalidade.
É esta a natureza, e são estes os contornos, de uma relação de trabalho. Quando noticiarem a sua cessação, sobretudo por despedimento coletivo, chamem tudo pelo seu nome. A linguagem conta. Matam aquilo que é fundamental e, quando o que é fundamental morrer, dirão que faleceu.
Artigo de opinião incluído no jornal Público em 20 de outubro de 2022.