« (...) [A linguista] Jana Viscardi: “Estaríamos todas, todos e todes incluídas na conversa”. Se ela não quer ser sexista, deveria escrever: “estaríamos todas, todos e todes incluídas, incluídos e incluídes na conversa”. Linguagem inclusiva e superconcisa, não? (...) »
Como tenho comentado aqui neste espaço, existe uma cruzada por parte de alguns colegas linguistas em prol de uma agenda muito mais ideológica do que científica, que, embora até bem-intencionada, já que visa à inclusão social por meio da linguagem, peca por falta de cientificidade, falseia fatos, distorce a realidade, propõe uma utopia irrealizável e sobretudo se equivoca ao querer nivelar a educação por baixo em vez de proporcionar aos mais carentes acesso ao verdadeiro ensino de qualidade.
Num artigo intitulado “Quando se fala de linguagem neutra, não é de linguagem neutra que se fala”, publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, a linguista Jana Viscardi lança mão de mais uma fake news para sustentar um ponto de vista ideológico. Tentando provar que a língua é machista por fazer a concordância no plural pelo gênero masculino (o famoso “bom dia a todos”, que supostamente excluiria as mulheres), ela diz:
«Um dos argumentos “linguísticos” mais comuns para recriminar o uso das novas formas e manter exclusivamente o uso das já conhecidas (a saber, o feminino e o masculino) é “todos já inclui todo mundo”. Eis aí o conceito de "masculino genérico", regra que faz parte de uma convenção na língua portuguesa (mas não só nela) em que, para se referir a um grupo de homens e mulheres, usa-se o masculino representando todo o conjunto. Assim, diz-se “bem-vindos” e estaríamos todas, todos e todes incluídas na conversa.
Assim, costuma-se aceitar o masculino genérico e assumir que «a língua é assim naturalmente». Pois eu terei que desapontar você: pesquisas conduzidas ainda nas décadas de 70/80 revelam que o uso do masculino genérico não tem nada de natural. Ann Bodine, por exemplo, nos revela, ao analisar gramáticas antigas, a incômoda realidade de que gramáticos dos séculos XVII e XVIII justificavam o uso de formas linguísticas masculinas (em distintas circunstâncias) pela relevância que o homem teria na sociedade. Observe, com isso, que a regra nada teria de “natural”. Ao invés disso, a definição dessa regra tinha a ver com a maneira como a presença das mulheres e dos homens era lida pela sociedade da época (e por aqueles que escreviam as gramáticas).
Esse exemplo ilustra algo fundamental para a discussão em torno da questão da neolinguagem: aquilo que muitos entendem como "natural" na língua pode ser uma convenção, como no caso do masculino genérico. E essa convenção se estabeleceu a partir do entendimento de sociedade que se tinha na época e, mais do que isso, o entendimento do papel da mulher nessa mesma sociedade, como apontei anteriormente. Desde a década de 70 questiona-se, então, o uso do masculino genérico e são propostas outras formas possíveis – pasmem, nas línguas do mundo há diferentes maneiras de se dizer a mesma coisa.»
Segundo a autora, a concordância no masculino não é natural, mas fruto de uma convenção estabelecida nos séculos XVII e XVIII por gramáticos homens (ela não disse brancos, heterossexuais, cisgênero e conservadores, mas está subentendido) com base no entendimento de que as mulheres tinham menos valor na sociedade da época do que os homens.
Não há dúvida de que esse entendimento era verdadeiro, tanto que até o filósofo Baruch Spinoza, apesar de toda a sua racionalidade, considerava que a filosofia não devia ser praticada por mulheres pelo fato de elas serem mais emocionais que os homens. Mas Ann Bodine, citada por Viscardi, apenas afirma que esse argumento era utilizado pelos gramáticos da época para justificar a concordância no masculino; em nenhum momento ela diz que essa concordância foi uma escolha desses gramáticos. Na verdade, essa escolha nunca ocorreu. Vamos explicar por quê.
Como se sabe, a língua portuguesa só admite dois gêneros gramaticais, o masculino e o feminino. Portanto, se a concordância no plural não fosse feita no masculino, teria de ser feita no feminino, já que não temos um terceiro gênero – teríamos então de dizer «bom dia a todas». Nesse caso, teríamos um sexismo reverso: os homens é que estariam excluídos.
Mas a questão é que a concordância no plural se dá no masculino em português desde muito antes do século XVII; na verdade, desde os primórdios da língua – ou ainda antes, no latim, que fazia a concordância para pessoas no masculino – multi vocati sunt, pauci vero electi, «muitos são chamados, poucos os escolhidos» (Mateus 22:14) – e para coisas no neutro – multa me dehortantur a vobis, «muitas coisas me desanimam em vós» (Salústio, Bellum Iugurthinum). Só que o latim herdou essa concordância do indo-europeu, que já a fazia 6 mil anos atrás. E este provavelmente a herdou do nostrático, língua-mãe do indo-europeu, falado há cerca de 10 a 15 mil anos. Se formos retroceder no tempo até achar a origem dessa concordância, descobriremos que os Homo erectus, primeiros hominídeos a desenvolver a fala, já tinham uma língua “machista”. E isso é assim por razões que têm a ver com nossa própria biologia. Na maioria das espécies animais, há uma prevalência física do macho sobre a fêmea; por exemplo, são os machos que disputam as fêmeas, e não o inverso. Isso obviamente se refletiu na linguagem desde que o homem começou a falar e foi passando de língua-mãe a língua-filha desde então. Como a evolução linguística é fortuita e não controlada por nossos desejos, essa situação nunca mudou, e não vejo como ela poderia ser mudada agora por decreto ou por força de uma militância política.
O fato é que, como expliquei em um capítulo do meu livro O universo da linguagem chamado “O gênero da natureza” e também no vídeo Linguagem neutre de gênere? do meu canal do YouTube, o gênero que subsume masculino e feminino, neutralizando-os, chama-se gênero complexo. Portanto, o latim multi não é propriamente masculino e sim complexo.
O que ocorreu na verdade, como já expus várias vezes, é que o latim tinha três gêneros, masculino, feminino e neutro. E podia, eventualmente, fazer a concordância plural no gênero neutro. Só que, por razões meramente fonéticas, o gênero neutro e o masculino se fundiram no latim vulgar ainda antes da passagem do latim ao português. Portanto, o gênero masculino assumiu as funções que antes eram do neutro. Esse processo não teve nada de ideológico, nunca pressupôs uma superioridade dos homens sobre as mulheres, mas tão somente decorreu de uma mutação fonética: a perda da consoante final que distinguia entre o gênero masculino e o neutro. Logo, a concordância no plural pelo masculino sempre foi uma injunção morfológica da língua portuguesa e jamais fruto de uma escolha dos falantes, muito menos dos gramáticos do século XVII.
Mesmo línguas como o inglês e o alemão, que neutralizam a oposição de gêneros no plural (o inglês all e o alemão alle significam indiferentemente “todos” ou “todas”), não fazem isso por razões de inclusão social, mas igualmente em decorrência da evolução fonética fortuita. Aliás, segundo a citada Ann Bodine, o inglês sempre utilizou o pronome pessoal plural supragenérico they no singular para neutralizar masculino e feminino (o tal gênero complexo); apenas por um período sua gramática normativa substituiu esse uso pelo masculino he (entre os séculos XVII e XIX) e em seguida passou a usar he or she, ou mesmo o feioso (s)he, para, mais recentemente, retornar ao uso de they. A solução encontrada pelo inglês evidentemente não funcionaria em português, em que teríamos de optar entre eles e elas, portanto o dilema continuaria.
Os defensores da tese de que o português é machista podem argumentar que, desde o início, os falantes poderiam dizer «bom dia a todos e todas» (“todes” seria impensável na Idade Média, quando o português surgiu: esse linguajar certamente terminaria na fogueira da Santa Inquisição). Só que, mais uma vez, há dois problemas nesse raciocínio. Primeiro, a questão da economia linguística, que também atende pelo nome de concisão: “todos” é mais simples que “todos e todas”. Segundo, se dizemos “todos e todas”, estamos colocando os homens em primeiro lugar, logo o machismo persiste. Se, ao contrário, dizemos “todas e todos”, estamos privilegiando as mulheres e aí caímos no já citado sexismo reverso. O mesmo vale se dizemos simplesmente “todas”.
Em suma, a concordância no plural pelo gênero masculino atendeu em primeiro lugar à evolução fonética natural da língua e em segundo ao princípio da economia linguística; a ideia de que isso é assim porque os homens são superiores às mulheres foi apenas um argumento oportunista usado pelos homens do passado para justificar sem base científica alguma, num tempo em que, por sinal, nem se sonhava com a existência de uma ciência da linguagem, um fato puramente gramatical.
Não sei se Jana Viscardi conhece esses fatos (deveria conhecer, já que é linguista) nem se defende seu ponto de vista equivocado por pura ignorância da história da língua ou se o faz por deliberada má-fé com o intuito de sustentar uma posição ideológica muito bem-vista no meio acadêmico de Letras, embora nem um pouco científica. Mas a realidade é que, nas chamadas ciências humanas (que, por vezes, e graças a essas mazelas, têm pouco de ciências), o uso de fake news como instrumento de argumentação é fato corrente. E, como os leitores de veículos como o Le Monde Diplomatique são na maioria leigos no assunto, essas fake news passam como verdades. Ainda mais quando quem assina o artigo detém um título de doutora em linguística.
P.S.: Jana Viscardi escreve: “estaríamos todas, todos e todes incluídas na conversa”. Se ela não quer ser sexista, deveria escrever: “estaríamos todas, todos e todes incluídas, incluídos e incluídes na conversa”. Linguagem inclusiva e superconcisa, não?
Cf. Desinformação e fake news são a mesma coisa? + Fake news: o Brasil é crédulo e educação midiática é saída
Texto publicado no dia 24 de maio de 2023 no Diário de um Linguista.