« (...)É pela boca que morre o peixe. Mas nas fake news, mesmo morto, o peixe continuar a nadar. (,,,)»
Hoje dedico esta newsletter sobre jornalismo a uma notícia que não existiu. Melhor dizendo, uma "suposta" notícia.
Parecerá absurdo, mas as fake news fazem parte do nosso ambiente mediático e é difícil escapar-lhes. Como a água que desce a montanha, as fake news entram no "caudal noticioso" disfarçadas de "informação" e, à mínima distracção, caímos na armadilha.
São mentiras mascaradas de verdade, vestidas com o grafismo dos jornais, usam fotografias reais dos protagonistas e inventam "citações" que soam a familiar.
E, quando são desmascaradas, há sempre alguém que diz que «ele pode não ter dito isso, mas é isso que pensa» ou «ela só não diz isso em público, mas em privado é todos os dias».
Ontem à noite, nos meus cinco minutos diários de X, vi um "autocolante" com o grafismo do semanário Expresso e o que parecia ser uma notificação de uma entrevista enviada pelo jornal aos seus leitores: a fotografia do entrevistado, uma aspa em tamanho grande e uma frase em corpo mais pequeno. Tudo o que acabei de escrever tem de ser lido com a palavra suposto. "Suposta" entrevista, "suposta" citação, "suposta" ideia.
Percebi que não podia ser verdade porque a frase é muito mal escrita, em péssimo português – além de confusa, tem erros ortográficos de fazer corar. Parei no "hajam".
O "suposto" post do Expresso a publicitar a "suposta" entrevista mostrava Rui Tavares, fundador e líder do Livre, a dizer que quer «uma sociedade livre de racismo» (quem não quer?), que no Reino Unido os brancos vão passar a ser minoria em 2065 (pensei que era em 2100) e que isso era «muito animador». Muito animador? Li outra vez. Só a seguir percebi que era invenção. O "suposto" post põe Tavares a dizer «mesmo que em Portugal não hajam estatísticas desse tipo».
Tavares é historiador, culto e passei anos a lê-lo no Público. Se há pessoa que sabe escrever é Rui Tavares. Já deu erros com certeza – quem não? – mas aquele "hajam" em destaque, numa notificação, seria um erro colectivo mais do que improvável: seria o erro de Tavares, o erro do jornalista que o entrevistara, o erro do editor que lera a entrevista, o erro do revisor que a lera a seguir, o erro do gráfico que paginara o "suposto" post, o erro do editor online que enviara a notificação para as redes. Com tantos olhos, alguém teria reparado.
Esta manhã, fui ao Expresso ler a entrevista. Queria ver o original e perceber que estranha frase era aquela, que parecia no mínimo uma amálgama, puxa uma frase daqui, puxa uma frase dali e vamos montar uma citação. E nada. Conclusão: Tavares não deu uma entrevista ao Expresso. O "suposto" post é uma invenção pura. De alguém que escreve mal e dá erros ortográficos.
E quem foi? Terá sido um tal "Capitão" – pelo menos é a primeira imagem que aparece no Google Images. Quando clico no handle do "Capitão", aparece a frase clássica nos casos de fake news: «Hmm... Esta página não existe. Tente procurar outra coisa.»
É o bê-á-bá das mentiras digitais nas redes: alguém quer dizer uma mentira que pareça uma verdade, faz em Photoshop um "autocolante" que imita uma notificação, inventa uma mentira, cria uma conta falsa e publica o post, espera meia hora para que alguém lhe pegue e comece a espalhá-lo e, quando sente que já não é necessário existir, que o bebé caminha sozinho, apaga a conta e vai à sua vida.
Porque a conta do "Capitão" já não existe, é difícil reconstituir o trajecto do "suposto" post do Expresso. Foi dali partilhada por quem e por quantas pessoas? Que impacto teve?
Só consegui ver que nas páginas do X onde o "suposto" post está publicado como verdade, há dezenas de mensagens que juntam muito do que é mais detestável no mundo, misturadas com vídeos do Chega e dos partidos da direita populista radical europeia, micro-posters digitais sobre «remigração» e «medo da violência antibrancos», ora num tom de quem está muitíssimo zangado com a vida e o mundo, ora num tom institucional, como se de propaganda política se tratasse.
Mas isto não é propaganda. A propaganda costuma dizer coisas verdadeiras, mesmo que sugira coisas falsas. «Uma alegação verdadeira, dita com sinceridade, pode ser propaganda e até demagogia», diz Jason Stanley no seu belo livro How Propagand Works (Princeton University Press, 2015). «Imagine um político não muçulmano nos Estados Unidos que diz: "Há muçulmanos entre nós." A afirmação é verdadeira; há muitos muçulmanos nos Estados Unidos. Mas a afirmação é uma espécie de aviso. O orador está a chamar a atenção do seu público para a presença de muçulmanos para semear o medo em relação aos muçulmanos. Por isso, as afirmações democráticas podem ser verdadeiras. Dirá que este argumento é demasiado rápido. Que se pode responder que a frase "há muçulmanos entre nós" exprime a verdade. A razão pela qual é propaganda é que comunica uma coisa falsa, comunica que os muçulmanos são intrinsecamente perigosos, o que é falso.»
Aqui é outra coisa. Estes "autocolantes" digitais são mentiras puras. Não sei se intoxicam mais ou menos do que as falsidades das verdades da propaganda. São feitos para quem tem predisposição para bater palmas a qualquer coisa que soe àquilo que quer ouvir. Com um problema adicional: não é só para eles que são inventados.
É pela boca que morre o peixe. Mas nas fake news, mesmo morto, o peixe continuar a nadar.
Cf. Fake news: o Brasil é crédulo e educação midiática é saída
Crónica da jornalista portuguesa Bárbara Reis, transcrita, com a devida vénia, da sua newsletter "Livre de Estilo", incluída no jornal Público, em 26 de junho de 2024. Texto escrito segundo a norna ortográfica de 1945.