«(...) [A] língua não é uma herança do mesmo tipo que as estátuas, façam elas parte de um património artístico ou sejam simplesmente um documento histórico. Quando dizemos que herdamos a língua, isso significa que ela está ali antes de nós e a sua lei precede-nos. (...)»
Já por várias vezes dediquei algum espaço nesta coluna à tarefa de criticar algumas afirmações de Miguel Sousa Tavares. É uma tarefa ociosa, mas quando, por profissão (que traz consigo alguns vícios), estamos atentos ao que se vai escrevendo e dizendo nos media, é difícil não tropeçarmos com sobressalto nos dislates de uma “opinião” armada de arrogância eufórica e desarmada de conhecimento que este cronista verte com frequência, como se tivesse recebido um dom que ninguém tem o poder de usurpar.
Na sua crónica do sábado [11 de dezembro de 2021], no Expresso, criticando violentamente umas declarações do cabo-verdiano Mário Lúcio [cf. Como está-tua ex-celência?] que já foi ministro da Cultura de Cabo Verde e também é escritor – defendendo a destruição dos símbolos do nosso passado colonial (mas não é essa vexata quaestio, tão complexa, que aqui me traz), subia ao Olimpo do nacionalismo linguístico e encontrava uma razão suplementar para mostrar que um tal iconoclasmo é tanto mais ilegítimo e bárbaro quanto ele vem de alguém que «faz um fraco uso desta extraordinária língua que lhe deixámos em herança – para além das estátuas».
Deve ser dito a Miguel Sousa Tavares que a língua não é uma herança do mesmo tipo que as estátuas, façam elas parte de um património artístico ou sejam simplesmente um documento histórico. Quando dizemos que herdamos a língua, isso significa que ela está ali antes de nós e a sua lei precede-nos. Herdar a língua, ao contrário do que acontece com as heranças materiais, sejam elas estátuas ou outra coisa qualquer, não significa receber passivamente um bem, mas reafirmá-la transformando-a, alterando-a, deslocando-a. Herdar uma língua significa sempre receber e dar porque se deixa inevitavelmente uma marca sobre aquilo que se recebe. Se a língua materna de Mário Lúcio é o português, como presumo, então ele é um “herdeiro” tão legítimo desta língua como Miguel Sousa Tavares, que se acha um herdeiro mais legítimo por direito genealógico, como fica subentendido quando assume o “nós” como detentor de uma propriedade que é esta extraordinária língua que lhe deixámos em herança». “Nós”, isto é: a nação portuguesa, o povo português, sujeito de uma história e de uma cultura, proprietário de uma língua que – fica sugerido – é em primeiro lugar e por direito natural “nossa”.
Impulso de apropriação
Sugere-se assim que nós, portugueses, não somos propriamente herdeiros da língua, como são os outros falantes do português: ela faz parte de nós, por essência e natureza, enquanto os outros têm que se reconhecer como herdeiros, por histórica doação. Deve então ser dito a Miguel Sousa Tavares que uma língua não pertence a ninguém, ninguém se pode crer seu proprietário. E isso é uma lei universal e o melhor que lhe pode acontecer porque é isso que lhe dá movimento e energia. O colonizador não possui a língua, impõe-na como sua a partir de um gesto histórico de usurpação natural. Mas se a língua é precisamente aquilo que não se deixa possuir, ela provoca – se não o soubéssemos já, Miguel Sousa Tavares dá-nos a saber – um impulso de apropriação.
Deve ser dito a Miguel Sousa Tavares que uma língua não se possui, não tem proprietários, não pode ser objecto desse gesto generoso e voluntário que consiste em “deixar” em herança a um outrem «esta extraordinária língua, a juntar às estátuas. Deve ser-lhe dito que a ligação natural entre língua e nação, e entre língua e povo, foi sempre justificada pelos mitos do enraizamento. A assimilação língua-nação designa geralmente a noção de “génio” da língua. E a etimologia de “génio”, o genos grego, está ligada ao nascimento, aos genes.
Ocorre aqui lembrar uma entrevista de Hannah Arendt, em 1964, treze anos depois de se ter naturalizado cidadã americana. Depois de ela afirmar que nunca se tinha sentido parte de um povo (nem sequer do povo judaico) nem de uma pátria, o entrevistador pergunta-lhe: «O que resta?». Ela responde: «Só resta a língua», a língua alemã que os seus presumidos e encarniçados proprietários queriam que fosse, a par do sangue, um factor de enraizamento. Hannah Arendt recusava assim as confusões que se estabelecem entre língua e pátria, entre língua e povo. E mostrava que os presumidos proprietários da língua, por mais que se tivessem esforçado por isso, não tinham conseguido deserdá-la porque uma língua herda-se sem que um “nós”, ou alguém, a deixe em herança.
Artigo do crítico literário António Guerreiro, in Público do dia 17 de dezembro, a propósito do que escreveu o jornalista Miguel Sousa Tavares no semanário Expresso, intitulado "Eu, estátua, indefesa e silenciosa".