Precisamos de variar a variação das variantes do português. Não tenho a propósito do acordo ortográfico nenhuma grande paixão. Acho natural que as línguas mudem e parece-me inevitável que algumas dessas mudanças se efectuem pela força do uso (seja através da importação do estrangeiro, seja por corrupção, modismos e neologismos) e outras pelo uso da força (a via normativa, vulgo acordo ortográfico). Uso e norma são a mãe e o pai da ortografia. Também me parece normal que a língua falada molde a língua escrita e vice-versa. Claro que há imensas coisas nas novidades que me afligem e arrepiam. Lembro-me de quando me horrorizava ouvir a popular sandes em vez da estrangeirada sanduíche, até que eu próprio comecei a recorrer à primeira com fiambre. Ainda me horroriza a sande singular mas já a vi nos dicionários e um dia deixarei provavelmente de a dizer a brincar para a dizer a sério. É a língua!
Sou conservador, sem exageros, em termos de língua — o que quer dizer que gosto de escrever hoje como aprendi ontem. Gosto de ortografia e tenho prazer em espreitar a etimologia escondida por baixo, mas não é por escrever água que deixo de saber que vem da mesma aqua de onde vem o esqui aquático (estranho esqui; aprendi "ski" em inglês — ou em francês? — porque vem do norueguês).
Haverá no acordo coisas que me enfurecerão e que nunca seguirei, com a mesma desobediência civil que faz aos lisboetas dizer Campo Santana e Largo da Misericórdia em vez de Campo dos Mártires da Pátria ou Largo Trindade Coelho. Outras que me enfurecerão e acabarei por seguir, às vezes com dúvidas semânticas (um afeto sem c parece mais afectado que afectuoso, mas será?) e outras variantes de comportamento.
Uma coisa é certa: sempre que ouço um debate entre acordonistas e contracordistas sinto-me tentado a aderir amanhã ao acordo, de tão ocamente nacionalistas (passe o pleonasmo) me parecem os argumentos dos últimos: o que os choca, em última análise, é que os nossos filhos vão escrever o português de uma forma diferente da nossa. A mim chocar-me-ia mais que escrevessem igual.
Mas não que os argumentos dos acordeonistas (o corrector diz-me que acordonistas não existe. Resisti à primeira mas adapto-me à segunda) me pareçam todos pertinentes — longe disso. Um deles é que o acordo vai tornar a escrita mais fácil porque a vai aproximar da língua falada. Quer dizer que seria ainda melhor se escrita se passasse a escrever "xkrita".
Outro argumento é que precisamos de variar a variação das variantes do português para as diferenças não serem demasiado diferentes porque senão os africanos só compram livros brasileiros (não sei se isto é um argumento em defesa do «português língua universal» ou «Angola é nossa» mas é uma das duas coisas).
O corrector ortográfico com que escrevo (quando for corretor será «com quem» escrevo?) regista 18 — dezoito — 18 variantes de inglês! Inglês da Austrália, Belize, Canadá, Caraíbas, Hong Kong, Índia, Indonésia, Irlanda, Jamaica, Malásia, Nova Zelândia, Filipinas, África do Sul, Trinidad e Tobago, Reino Unido, EUA e Zimbabwe. E 16 variantes de árabe, 15 de francês, 20 de espanhol e (espanto) 9 variantes de finlandês. Uma de albanês e basco. De português há duas. As 9 variantes de finlandês são certamente as razões dos problemas de afirmação desta língua e a única variante de basco explica a sua pujante irradiação, mas... como se explicam os outros casos?
Vejo uma só forte razão para recusarmos o acordo ortográfico: deixaríamos de ter de ouvir Vasco Graça Moura a refutá-lo. Maupassant jantava no restaurante da torre Eiffel porque era o único sítio de Paris de onde não se via o monumento. É a mesma táctica.
*in "Público", 6 de Maio de 2007