«O AO90 – escreve o autor, um dos subscritores da Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra a aplicação do Acordo Ortográfico em Portugal – ficou (nos seus próprios termos) inaplicável, suspenso de facto futuro». Texto dado à estampa pelo jornal Público de 26/02/2012.
O 18.º Governo entendeu, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, de 25/1 (RCM), pôr em vigor o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), tornando obrigatória a sua aplicação "em todos os actos, decisões, normas, orientações, documentos, edições, publicações, bens culturais ou quaisquer textos e comunicações, sejam internos ou externos, independentemente do suporte, bem como a todos aqueles que venham a ser objecto de revisão, reedição, reimpressão ou qualquer outra forma de modificação», lê-se no preâmbulo.
Ora, para que se perceba, de modo sumário (portanto, redutor), o que está em causa, convém examinar o texto dessa RCM.
Lê-se, ainda no preâmbulo, que o AO90, «assinado em Lisboa em 1990, (...) incide apenas sobre a ortografia, mantendo-se a pronúncia e o uso das palavras inalteráveis» e, mais à frente, «Esta resolução adopta, ainda, o Vocabulário Ortográfico do Português, produzido em conformidade com o Acordo Ortográfico, e o conversor Lince (...) ambos desenvolvidos pelo Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC) com financiamento público do Fundo da Língua Portuguesa».
No n.º 1 surge a determinação curiosa de que as entidades visadas («o Governo e todos os serviços, organismos e entidades sujeitos aos poderes de direcção, superintendência e tutela do Governo») «aplicam a grafia do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 26/91 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 43/91, ambos de 23 de Agosto", o que pressupõe que essa grafia é conhecida e pode ser consultada e utilizada. E, de curiosidade em curiosidade, chegamos ao n.º 6 da RCM, onde se lê que o Governo resolve «adoptar o Vocabulário Ortográfico do Português e o conversor ortográfico Lince, disponíveis no sítio da Internet http://www.portaldalinguaportuguesa.org/ e nos respectivos sítios da Internet dos departamentos governamentais».
Conclui-se, então, que a aplicação do AO90 consiste na adopção de qualquer coisa que não o próprio acordo, e que se designa por "Vocabulário Ortográfico do Português" e "Lince". O mistério adensa-se. Buscando a verdade oculta, percebe-se que tais designações são de trabalhos elaborados por empreitada, por umas pessoas (certamente, financiadas) a quem o Governo alienou a incumbência da criação de uma suposta norma! O Estado "legisla" por encomenda!
Portanto, à pergunta «o que é que diz o Acordo Ortográfico?», o Estado responde, com secular sabedoria, «não faço a mínima ideia, mas vou ali perguntar a umas pessoas que eu conheço e já venho».
Para quem não esteja a perceber nada, por não ter lido o AO90, esclareço. O texto publicado no Diário da República de 23-8-1991 não contém, realmente, a nova grafia das palavras. O que se lê, num anexo, é apenas um conjunto de regras gerais (muito mal feitas), para serem mais tarde concretizadas (artigo 2.º do AO90) através do estabelecimento de um vocabulário ortográfico comum a todos os países signatários (ou seja, por via de outro acordo, específico), que nunca foi feito.
Isto significa que o AO90 ficou (nos seus próprios termos) inaplicável, suspenso de facto futuro. Não sou eu quem o diz. É o texto do AO90 que é explícito. E, no meio do absurdo, tem lógica que assim seja, pois ninguém sabe ao certo explicar o que significa «escreve-se quando se pronuncia», porque isso retira o "h" ao verbo "haver", por exemplo, e deixa a dúvida acerca do "p" em "excepto", porque o João não diz o "p", mas a Maria diz o "p". Se o Estado se comprometera, com os demais signatários, a elaborar o vocabulário comum, não poderia entregar a mãos incertas aquilo que nem sequer é seu: a Língua Portuguesa.
Postos à solta, os legisladores por contrato andaram a inventar. Já que estavam "com a mão na massa", moldaram (com os pés?) o próprio acordo (que não lhes pareceu suficientemente mau...), cortando consoantes a granel, como se não houvesse amanhã! O acordo, na Base IV, prevê duplas grafias?! Nada disso! O acordo prevê, mas eles não deixam! Com a legitimidade democrática do recibo verde e a sensibilidade linguística da retroescavadora, esta troika oculta reinventou a Língua, segundo o insondável critério do «acho que fica melhor assim». No entusiasmo, aproveitou o facto de o AO90 ser aberto e impreciso e, milhares de euros mais tarde, eis que pariu esta malformação inviável, a que chamam VOP e Lince. E é como estamos. Porém, num Estado de Direito, de onde a certeza e a segurança não devem ausentar-se, as coisas não são assim.Por isso, sem norma técnica com valor jurídico que as defina, as regras gerais do AO90 não vigoram.
Como se entende, pois, esta desenfreada imposição do disparate? É simples. A maioria das pessoas não leu o texto do acordo. Diz-se que aquilo é obrigatório. Os impostos pagam as acções de (de)formação nos serviços públicos e nas empresas. Começa a usar-se o barbarismo de modo generalizado. E pronto! A mentira torna-se verdade e não se fala mais nisso.
Mas «há sempre alguém que resiste». Por isso, se as iniciativas em curso prosseguirem, designadamente a Iniciativa Legislativa de Cidadãos que visa suspender a asneira (v. http://ilcao.cedilha.net/), bem como as políticas e judiciais, além da legítima desobediência civil, ainda veremos os de sempre, já virados do avesso de modo politicamente correcto, berrando nos púlpitos «não fui eu! eles obrigaram-me! eu estive sempre do lado certo!».
Pena o imortal Eça de Queirós não estar cá para escrever o 2.º tomo de O Conde d"Abranhos!
In jornal Público do dia 26 de fevereiro de 2012, que, com as adaptações ao registo escrito, sintetiza o essencial da intervenção do autor no Goethe Institut, em 9/01/2012