«[A] regra de acentuar todas as esdrúxulas é de 1911, não existia antes, o que permite relativizar estas questões [à volta do Acordo Ortográfico de 1990], que não são, como muitos pretendem apaixonadamente, de lesa-pátria.» Artigo publicado no jornal Público de 26/02/2012.
1. Esta questão chegou a um ponto que venceu a minha resistência em meter-me outra vez ao barulho. E digo outra vez porque na discussão dos anos 80 contribuí para evitar algo que me pareceu muito grave na proposta de então: retirar todos os acentos às palavras esdrúxulas. Um dos argumentos que usei, além dum de ordem estatística sobre as divergências luso-brasileiras que precipitavam a drástica decisão, foi a de que os ministros e outros têm com frequência que ler textos que seus assessores escreveram para eles e onde aparecem com alguma frequência palavras caras que ninguém diz e que, sem os acentos, iriam provocar muitos risos na assistência. Mas essa guerra acabou bem.
2. Acontece contudo que essa regra de acentuar todas as esdrúxulas é de 1911, não existia antes, o que permite relativizar estas questões, que não são, como muitos pretendem apaixonadamente, de lesa-pátria. Senão, haveria que reclamar o regresso das consoantes duplas, affirmação, belleza, ou os ph em philosophia e na pharmácia. O que me parece justificar essa paixão é sentir-se uma pessoa que escreve, escritor ou não, atacado em algo de muito pessoal: a sua espontaneidade em escrever depressa e bem. Assim como não se vê uma lei que obrigue a gente de Lisboa a falar à moda do Alentejo ou da Madeira, também é desmedida uma lei que nos obrigue a "dar erros" no que escrevemos. 1.ª conclusão: a lei não pode obrigar adultos experientes nas suas escritas, privadas ou públicas.
3. O que é que, por outro lado, me parece certo no Acordo lusógrafo? Tem a ver com a escrita oficial, sem dúvida, mas não creio tanto para "unificar" as escritas: há brasileiros que escrevem como nós e outros que quase não entendemos. A vantagem mais pragmática parece-me ser a seguinte: nos usos da Teia global, os seus motores como os endereços, contam com todas as letras e com todas as suas faltas, e desse ponto de vista parece-me obviamente claro que é muito melhor que haja uma só ortografia no que aos textos oficiais diz respeito. Mas ao mesmo tempo, esses usos estão a dar cabo de todas as ortografias, toda a gente faz abreviações de rapidez nas mensagens e nos mails e nos blogues, e por aí fora, o que deve ser um quebra-cabeças para qualquer professor de Português, muito maior do que o que o Acordo possa provocar.
4. Ora, é nas escolas que a questão é complicada, porque a quem está a aprender a escrever o problema das consoantes mudas não se põe (a mim, sim, porque não as digo mas leio-as!). E aí julgo que o Ministério da Educação tem pertinência em propor uma lei destas. Poupem-nos a nós, os mais velhos, deixem que o tempo nos leve e que daqui a umas boas dezenas de anos já seja como em relação aos dois ll ou ao ph, igual para todos.
In jornal Público do dia 26 de fevereiro de 2012