A principal razão de o português ser hoje língua oficial de um conjunto de países deve-se à expansão marítima iniciada pelos portugueses no século XV, com maior ou menor demora, sob variadas formas políticas. Em alguns dos espaços a que os portugueses acabaram por chegar durante este período não havia populações, o que se verificou nos arquipélagos do Oceano Atlântico. Por conseguinte, Açores, Madeira, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe eram espaços sem vida humana até os portugueses iniciarem a sua colonização. No entanto, o povoamento destes arquipélagos ocorreu de maneira diferente, o que de alguma forma condicionou o destino da língua portuguesa em cada um deles.
Os arquipélagos dos Açores e da Madeira foram desde logo povoados a partir de populações oriundas de Portugal e que aí acabaram por se fixar. Por outro lado, os arquipélagos de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe foram sobretudo povoados por populações oriundas de África, visto que o objetivo era utilizar estas terras como entreposto comercial para o comércio de escravos. Consequentemente, nos lugares onde os portugueses cedo se fixaram e estabeleceram colónias como, por exemplo, os Açores e a Madeira, a língua permaneceu, sendo hoje o idioma materno da grande maioria da população. Contudo, nos lugares onde a fixação não foi prolongada e as necessidades de comunicação levaram à criação de crioulos, como foi o caso de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, o português acabou por assumir um estatuto de língua segunda.
De modo a compreender um pouco melhor a realidade linguística de Cabo Verde, nomeadamente o estatuto e papel que a língua portuguesa desempenha nos dias de hoje, o Ciberdúvidas conversou com a professora da Universidade de Cabo Verde Goreti Freire. Nesta conversa, publicada em duas partes, esta especialista explica-nos a relação da língua portuguesa com o crioulo cabo-verdiano, a forma como funciona a coexistência destes dois sistemas linguísticos e como é que isto afeta o ensino neste país.
Português: uma herança colonial
Quando falamos da realidade linguística de Cabo Verde, Goreti Freire assinala que se deve considerar que «estamos perante um país bilingue», uma vez que grande parte da população tem a capacidade de compreender e produzir discurso em crioulo, língua que aliás é a materna de muitos cabo-verdianos, mas também em português. No fundo, neste arquipélago do Atlântico, encontramos duas línguas que convivem de forma pacífica. Contudo, Freire ressalva que «esta pacificidade é, no entanto, marcada por algumas particularidades».
No quotidiano, os cabo-verdianos comunicam sobretudo em crioulo, sendo o português relegado para a escola e situações mais formais. Esta professora explica que o crioulo tem, em Cabo Verde, vindo a ganhar cada vez mais espaço, uma vez que «está nas igrejas, nas escolas, no parlamento, na comunicação social». Para além disso, pontualmente têm surgido alguns decretos-lei que se traduzem substancialmente como iniciativas para a valorização da língua cabo-verdiana.
Esta realidade faz com que o bilinguismo característico de Cabo Verde seja considerado como assimétrico, na medida em que «a compreensão e produção oral é realizada acima de tudo em língua materna (crioulo cabo-verdiano), ao passo que a compreensão e produção escrita ocorre em língua segunda (português)». Isto acontece porque a população cabo-verdiana é escolarizada em português, mas não em crioulo.
Embora a escolarização seja feita em língua portuguesa, é facto que o crioulo está cada vez mais a ganhar relevância no seio da comunidade de Cabo Verde, o que se verifica sobretudo no uso acentuado do crioulo por parte dos mais jovens, o que explica a sua presença também nas salas de aula. Esta realidade não invalida, contudo, que não exista consciência por parte dos cabo-verdianos do valor do português, já que, como indica Goreti Freire, «todos os falantes cabo-verdianos têm consciência que o português é uma herança colonial. É a língua que nos une a outros países da CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa], para além de ser a usada na comunicação internacional».
Veja o vídeo relativo à primeira parte da entrevista à professora Goreti Freire aqui: