Na sequência da publicação de um aviso do Ministério do Negócios Estrangeiros (MNE) de Portugal em que se define a data de 13 de Maio de 2009 como a de entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990 em Portugal, o tradutor João Roque Dias assina aqui um texto em que levanta dúvidas sobre a validade desse documento e dessa data.
No Diário da República, 1.ª série — N.º 182 — 17 de Setembro de 2010, foi publicado o Aviso n.º 255/2010 do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Saltando rapidamente para o último parágrafo, lemos que o acordo ortográfico (AOLP) entrou “em vigor para Portugal nesta data”, i. e., 13 de Maio de 2009.
Isto é, a 17 de Setembro de 2010 (data da publicação do aviso no Diário da República), o Governo português informou, pela via oficial, que o AOLP tinha entrado em vigor 1 ano, 4 meses e 4 dias ANTES.
E será mesmo assim? Afinal quando entrou em vigor o AOLP em Portugal? Para responder a esta pergunta, basta ler os documentos do acordo ortográfico e mais umas leis portuguesas, uma das quais a própria Constituição Portuguesa.
Comecemos então por ler o aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal.
NOTA: como o AOLP é um tratado internacional, de que Portugal é o Estado depositário (alguém tem de guardar a papelada), é, de facto, ao MNE que compete manter o expediente e o calendário do acordo ortográfico e deles dar conta aos cidadãos portugueses e aos restantes Estados signatários.
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Ministério dos Negócios Estrangeiros
Aviso n.º 255/2010
Por ordem superior se torna público que tendo a República Federativa do Brasil e a República de Cabo Verde procedido, em 12 de Junho de 2006, ao depósito dos instrumentos de ratificação do Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, adoptado em São Tomé e Príncipe em 25 de Julho de 2004, e tendo a República Democrática de São Tomé e Príncipe efectuado o respectivo depósito em 6 de Dezembro de 2006, o referido Acordo do Segundo Protocolo Modificativo entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2007, nos termos dos seus artigos 1.º e 3.º, que alteraram o artigo 3.º do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1).
Por parte de Portugal, o Acordo do 2.º Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa foi aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008, tendo sido ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 52/2008, ambos publicados no Diário da República, 1.ª série, n.º 145, de 29 de Julho de 2008 (2). O depósito do respectivo instrumento de ratificação foi efectuado em 13 de Maio 2009 (3), tendo o referido Acordo entrado em vigor para Portugal nesta data (4).
Direcção-Geral de Política Externa, 13 de Setembro de 2010. — O Director-Geral, Nuno Filipe Alves Salvador e Brito.
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20 ARGUMENTOS PARA UMA RESPOSTA:
1. Nos termos da nota (1) acima, tudo está de acordo com o Acordo do 2.º Protocolo Modificativo do AOLP, que estipula: «3 — Estabelecer que o presente Protocolo Modificativo entrará em vigor no 1.º dia do mês seguinte à data em que três Estados-membros da CPLP tenham depositado, junto da República Portuguesa, os respectivos instrumentos de ratificação ou documentos equivalentes que os vinculem ao Protocolo.»
Isto é, como o último dos 3 depósitos dos instrumentos de ratificação (por parte de São Tomé e Príncipe) foi realizado a 6 de Dezembro de 2006, o AOLP entrou em vigor — para os Estados que o tivessem ratificado até 31 de Dezembro de 2006 — a 1 de Janeiro de 2007.
2. Nos termos da nota (2) acima, os factos e datas indicados são factuais e não necessitam de mais comentários.
3. Nos termos da nota (3) acima, a indicação da data do depósito do instrumento de ratificação do Acordo do 2.º Protocolo Modificativo (13 de Maio de 2009) é da responsabilidade do Governo, sendo o Aviso n.º 255/2010 o instrumento jurídico necessário para definir tal cumprimento por parte de Portugal.
4. Nos termos da nota (4) acima, o Governo dá fé de o AOLP ter entrado em vigor nesta data, i. e., a 13 de Maio de 2009. Ora, a referida nota não poderia indicar esta data como a da “entrada em vigor” do acordo ortográfico.
5. E, facto estranho, o depósito da ratificação do acordo do 2.º protocolo modificativo ocorreu apenas a 13 de Maio de 2009, ou seja, 9 meses e 14 dias após a publicação do decreto de ratificação pelo Presidente da República.
6. E, facto ainda mais estranho, disso só informa os cidadãos 1 ano, 4 meses e 4 dias depois!
7. Ora, a Constituição Portuguesa estipula o seguinte, no seu artigo 119.º, ponto 1.b: «São publicados no jornal oficial, Diário da República: As convenções internacionais e os respectivos avisos de ratificação, bem como os restantes avisos a elas respeitantes.»
8. E a Constituição Portuguesa diz também no n.º 2 do mesmo art.º 119: «A falta de publicidade dos actos previstos nas alíneas a) a h) do número anterior e de qualquer acto de conteúdo genérico dos órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local, IMPLICA A SUA INEFICÁCIA JURÍDICA.»
9. Também a Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro, alterada pelas Leis n.ºs 2/2005, de 24 de Janeiro, 26/2006, de 30 de Junho, e 42/2007, de 24 de Agosto, estipula que (art.º 1-1) «A EFICÁCIA JURÍDICA dos actos a que se refere a presente lei DEPENDE DA SUA PUBLICAÇÃO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA».
10. Nos termos do parágrafo anterior, os actos referidos na lei mencionada são (art.º 3.º 1-b) «As convenções internacionais, os respectivos decretos presidenciais, os avisos de depósito de instrumento de vinculação, designadamente os de ratificação, e demais avisos a elas respeitantes».
11. Temos assim duas leis, a Constituição Portuguesa e uma lei em vigor, que estipulam, sem margem para dúvidas ou interpretações enviesadas, que o depósito da ratificação do Acordo do 2.º Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa por parte de Portugal:
a) é de publicação obrigatória no Diário da República;
b) apenas adquire eficácia jurídica pela sua publicação no Diário da República.
12. Só pode de facto assim ser! Afinal, estando o Governo obrigado a publicar oficialmente os actos próprios da sua administração, como se poderia saber da sua existência, senão através de tal publicação? Apenas o Governo português sabe quando efectuou o depósito do instrumento de ratificação do Acordo do 2.º Protocolo Modificativo do AOLP. Mas nós, e os restantes Estados signatários do AOLP, apenas ficamos a saber que tal acto foi realizado depois da publicação de tal informação no Diário da República. Sem isso, o acto não existe, ou, como dizem a Constituição e a Lei, é JURIDICAMENTE INEFICAZ.
13. A “entrada em vigor” (redacção utilizada no Protocolo Modificativo) só pode ter EFICÁCIA JURÍDICA nos termos definidos pela Constituição Portuguesa e pela Lei n.º 74/98. Afinal, a “entrada em vigor” pode ter diversas vias nos outros Estados signatários do AOLP. Em Portugal, é EXCLUSIVAMENTE pela publicação no Diário da República!
14. Logo, a entrada em vigor do AOLP adquiriu eficácia jurídica APENAS na data da publicação em Diário da República do acto necessário para tal: o aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros dando fé do depósito do instrumento de ratificação do Acordo do 2.º Protocolo Modificativo por parte de Portugal. Tal data é 17 de Setembro de 2010.
15. E, face ao exposto, como pode o Sr. Director-Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros declarar no aviso que assinou ter o AOLP entrado em vigor na data do depósito da ratificação do Acordo 2.º Protocolo Modificativo, i. e., 13 de Maio de 2009, sem estar cumprido o requisito legal para tal acto ter adquirido a necessária eficácia jurídica?
16. Regista-se, ainda, o facto de a publicação ter ocorrido 1 ano, 4 meses e 4 dias depois da ocorrência do acto a que se refere!
17. Tal publicação poderia ter ocorrido a 14 de Maio de 2009 (i. e., no dia a seguir ao depósito do instrumento de ratificação). Por razões que apenas o Governo pode explicar, a publicação do acto ocorreu apenas 1 ano, 4 meses e 4 dias DEPOIS. E é verdade que tal publicação é uma exigência para a aquisição da eficácia jurídica do acto a que se refere!
18. Sobre o período de transição para a entrada em vigor efectiva das disposições do AOLP, o Decreto do Presidente da República n.º 52/2008, publicado no D. R. a 29 de Julho de 2008, no art.º 2.º 2. (Declaração), estipula que «No prazo limite de seis anos após o depósito do instrumento de ratificação do Acordo do 2.º Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, a ortografia constante de novos actos, normas, orientações, documentos ou de bens referidos no número anterior ou que venham a ser objecto de revisão, reedição, reimpressão ou de qualquer outra forma de modificação, independentemente do seu suporte, deve conformar-se às disposições do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa».
19. Ora, adquirindo o Acordo do 2.º Protocolo Modificativo eficácia jurídica apenas a 17 de Setembro de 2010, o prazo limite de seis anos referido no decreto de ratificação do Presidente da República decorre até 17 de Setembro de 2016. Como poderia, afinal, um prazo limite para obter o propósito definido numa lei ser contado a partir de uma data em que essa lei não tinha, ainda, adquirido eficácia jurídica?
20. E quem estipula tal data é a Constituição da República Portuguesa e a Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro, alterada pelas Leis n.ºs 2/2005, de 24 de Janeiro, 26/2006, de 30 de Junho, e 42/2007, de 24 de Agosto.
Comentário final: e faz algum sentido o Governo declarar a entrada em vigor de uma lei (ainda que em data errada), sem estar cumprido um requisito fundamental dessa mesma lei, a preparação do Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa, nos termos do art.º 2.º do AOLP?