No contexto da audição parlamentar promovida pelo Grupo de Trabalho para Acompanhamento da Aplicação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, da Comissão de Educação, Ciência e Cultura da Assembleia da República Portuguesa, Maria Helena Mira Mateus, professora catedrática jubilada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e presidente do Instituto de Linguística Teórica e Computacional, elaborou a apresentou no dia 21 de março de 2013 o parecer que adiante se transcreve.
Em primeiro lugar, agradeço o convite que me foi endereçado pelo vosso Grupo de Trabalho para vir pronunciar-me sobre “os objetivos do Acordo Ortográfico, vantagens, inconvenientes e problemas da sua aplicação”. Faço-o com empenhamento porque considero que esta questão está relacionada com os estudos que tenho desenvolvido como linguista sobre a natureza da ortografia portuguesa e sobre as suas implicações na aprendizagem da leitura e da escrita.
É do conhecimento de linguistas e pedagogos que uma ortografia transparente (o que implica “simplificada” em relação à pronúncia das palavras) tem vantagens para a aquisição da leitura, afirmação que se tem provado teórica e empiricamente. Todos os esforços que se façam no sentido da simplificação ortográfica devem, portanto, ser bem aceites. No entanto, não podemos concluir que a biunivocidade completa entre grafema e fonema seja sempre atingível. As ortografias das diferentes línguas têm a sua história, o que significa que se tem de preservar justificadamente uma certa complexidade.
Quando falo da história de qualquer ortografia, tenho em vista a sua natureza que decorre de características que a identificam. Da análise que faço da ortografia portuguesa concluo que é maioritariamente fonológica (e não, por exemplo, etimológica). Na base desta afirmação está a constatação de que (a) um único grafema – que se pode identificar
como um elemento do sistema fonológico – cobre diferentes realizações fonéticas e (b) dois grafemas – representando apenas um som na norma padrão – podem ser reconhecidos como representações de oposições fonológicas em certos dialetos. Este aspeto da ortografia é sensível sobretudo nas letras que representam vogais que, correspondendo a elementos do sistema da língua como /o/, /e/ ou /a/, representam também diferentes realizações fonéticas. Não se justifica assim, nestes casos, qualquer alteração de grafemas que, embora correspondendo a diferentes pronúncias, representem elementos do sistema fonológico do português.
Diferente é o caso das consoantes que não se pronunciam ou cuja pronúncia alterna entre as duas variedades – as chamadas ‘consoantes mudas’. A sua eliminação não contraria a natureza da ortografia do português e contribui para uma desejável simplificação que aumenta a transparência da forma gráfica das palavras. A eliminação dessas consoantes concorre para que se atinja uma necessária proficiência na aquisição e no ensino da leitura, proficiência que se concretiza na velocidade de apreensão da forma e do significado das palavras além de unificar as grafias portuguesa e brasileira de muitas palavras. Aliás, a vantagem dessa eliminação já era considerada no acordo ortográfico que foi aprovado, em 1931, pelas duas academias brasileira e portuguesa.¹ A partir daí, vários autores se pronunciaram sobre a vantagem dessa supressão.
Em 1986, Lindley Cintra considerou necessário, em artigo publicado no Expresso em 28 de junho de 1986, dar a conhecer “as origens do novo acordo” que assentavam nas conclusões de um simpósio realizado em 1967 em Coimbra, em que se propunha “a realização de estudos destinados a promover maior simplificação do sistema ortográfico unificado”. Como introdução às propostas aprovadas em 86, diz Cintra: “Os inconvenientes que resultam da diversidade ortográfica entre o Brasil e Portugal (…) são demasiado evidentes para que seja necessário mencioná-los ou sequer acentuá-los de novo. Pode e deve, pois, considerar-se indispensável e urgente que se chegue a um verdadeiro e eficaz acordo sobre tal matéria, ainda que para isso haja que sacrificar preconceitos e hábitos há muito adquiridos, os quais poderão causar uma inicial e compreensível estranheza perante uma ou outra das medidas a adoptar. Além da extrema conveniência de ordem prática, deve pesar-se nesta decisão que, sendo a grafia secundária em relação à oralidade e representação sempre meramente convencional desta, não é mais nem menos científica uma grafia simplificada, em que se renuncia a certos hábitos gráficos apoiados numa tradição mais ou menos longa, do que uma grafia dita etimológica, a qual, além disso, para o ser efectiva e coerente, exigiria o regresso puro e simples a outros hábitos há muito abandonados.”
Sendo uma das propostas do acordo assinado em 86 a eliminação das ‘consoantes mudas’, relativamente a essa questão diz Cintra: “Com efeito, a vantagem de conservar a ‘letra muda’ para indicar que é aberta a vogal anterior átona é uma vantagem mínima, se considerarmos: (a) que ela não compensa o inconveniente, bem mais grave, da disparidade das grafias em Portugal e no Brasil, e que é insensato pretender levar um brasileiro a escrever actor e acção já que, mesmo sem o c ‘mudo’, as grafias ator e ação representam fielmente a sua pronúncia. (b) que escrevemos em Portugal padeiro, corar, caveira, credor,
geração, quaresmal, sarmento, especar, especular, aguar, aguadeiro, aguaceiro, esfomeado, retaguarda, agachar, relator, dilação, retrovisor e uma infinidade de outras palavras, sobretudo de carácter culto, mas em grande parte generalizadas com vogais átonas abertas, não assinaladas por ‘letra muda’, nem qualquer outro sinal gráfico, sem que isso cause qualquer perturbação.”
A consequência de suprimir as consoantes mudas aceitando embora a sua escrita quando são pronunciadas em certa variedade cria, é certo, vários casos de dupla grafia, a qual existe também na ortografia pré-acordo. (p. ex., equipe/equipa; controle/controlo, louro/loiro, cobarde/covarde). Esses casos de grafia dupla não são tão frequentes, que devam pôr em causa a decisão de suprimir a consoante não pronunciada. Em parecer que me foi pedido pelo Instituto Camões em 2005 e em que se solicitava a minha opinião sobre se a aplicação do acordo obrigaria à substituição de livros com a ortografia anterior, eu
considerei que se estava em período de transição e portanto essa substituição não era obrigatória. Aliás, esse período mantém-se até 2015, mas presentemente os livros escolares e a generalidade dos instrumentos de trabalho aplicam o acordo apesar de o período de transição ainda não ter terminado. Estou portanto convicta de que as duplas grafias para esses casos específicos terão o seu lugar nos instrumentos de trabalho e nos corretores ortográficos, e poderão ser indicados no Vocabulário Ortográfico Comum. De resto, quando se procede a um acordo, é sempre necessário realizar certos acertos no momento da publicação dos vocabulários oficiais.
Passados 26 anos sobre a negociação deste acordo ortográfico, estamos agora numa ocasião em que constantemente se fala sobre problemas da nossa economia. Seria um grande erro não considerar o uso e a difusão da língua como uma mais-valia no campo das interações económicas e um dos mais importantes instrumentos que cabem à iniciativa governamental e coletiva. Se se constituiu a CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa), todos os esforços para unificar a sua representação escrita têm um valor real, económico e social, que não podemos descurar. O português é hoje ensinado em numerosos países que ultrapassam em muito os que integram a CPLP. Se tivermos uma ortografia basicamente unificada, o ensino da língua da responsabilidade de portugueses, brasileiros ou professores de outros países beneficiará dessa unificação. Note-se, além disso, que desse benefício tirará Portugal claro proveito pela possibilidade de penetrar em vastos mercados que terão maior abertura para aceitar os livros produzidos no nosso país.
Se tivéssemos uma estratégia e um programa de difusão da língua portuguesa, a simplificação e a unificação da escrita seriam um dos instrumentos de maior eficácia, e facilitariam a preparação e o desenvolvimento de materiais didáticos, a realização de projetos dinamizadores de parcerias no seio da CPLP, a construção de aplicações computacionais, a divulgação de obras literárias de autores portugueses que merecem ser conhecidos e estudados para além das nossas fronteiras.
Lisboa, 20 de março de 2013.
¹ Ivo Castro, Inês Duarte e Isabel Leiria (orgs.), A Demanda da Ortografia Portuguesa. Lisboa: João Sá da Costa,
1987, pp. 163-166.