O embaixador Luís Faro Ramos, presidente do Instituto Camões, afirma que o português está em crescimento acelerado e é uma língua de futuro, um activo global na área cultural, da comunicação, na ciência, na economia. Mas o esforço na sua projecção e ensino não pode ser só de Portugal.
A língua portuguesa está numa fase de crescimento acelerado em todo o mundo, com uma procura crescente a nível de aprendizagem e uma projecção promissora nos quatro continentes. É hoje um “activo global” em muitos domínios, mas o embaixador Luís Faro Ramos, presidente do Camões – Instituto da Cooperação e da Língua que assegura a fatia de leão do esforço do ensino da língua –, sublinha que Portugal não é dono da língua portuguesa, que é policêntrica e plural. O esforço da sua afirmação no mundo tem de ser de todos os países da CPLP.
A Língua Portuguesa é uma língua global: o português ocupa uma posição sólida entre as dez línguas mundiais mais importantes pelo número de falantes de língua materna e presença global, estando presente em quatro continentes, como confirma o livro A língua portuguesa como activo global, lançado em Maio. O que é que mais o surpreendeu no estudo que lhe deu origem [A Língua Portuguesa como Ativo Global], coordenado por Luís Reto?
O estudo confirma que, seja qual for o ângulo pelo qual se olhe para a língua portuguesa, ela é presente, sólida, está sempre entre as dez primeiras e é, sobretudo, uma língua de futuro. Se nós somarmos a população da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), já são mais de 280 milhões de pessoas. E depois temos as diásporas: só a portuguesa são cerca de cinco milhões, e as do Brasil e de Cabo Verde também são importantes. Facilmente temos mais de 290 milhões. Isto do ponto de vista das populações.
Disse que a língua portuguesa é uma língua de futuro. Chegou a hora da língua portuguesa, como diz o livro?
O português já foi uma língua franca, no séc. XVI, depois passou uma fase de desaceleração e agora está outra vez em acelerado crescimento. Este ano comemoramos, pela primeira vez, o Dia Mundial da Língua Portuguesa, a 5 de Maio, depois de a UNESCO o ter instituído no ano passado. É a primeira e única língua não oficial das Nações Unidas que tem um dia mundial e isso deve ser assinalado. Tem uma demografia a crescer, sobretudo em África – constata-se no estudo que a geografia da língua portuguesa vai deslocar-se da América Latina para África, porque Angola e Moçambique vão ter mais seis ou sete vezes a sua população no fim do século, chegando aos 300 milhões de habitantes, mais do que o Brasil.
O livro aponta para a língua portuguesa como um activo em múltiplos sectores: na área cultural, da comunicação, na ciência, na economia. É uma língua plural, multicêntrica e com muitas valências. O Camões constata que o interesse cresce, a procura é enorme. A língua portuguesa está no centro da política externa portuguesa e tem certamente um futuro brilhante à sua frente. Temos é de cuidar dela.
O livro conclui pela necessidade de «investimento em larga escala para aplicar uma Política de Língua em toda a CPLP», através de um «ensino massivo do português como segunda língua». Independentemente do dinheiro, existe vontade política de todos os parceiros da CPLP para este objectivo?
Portugal não é o dono da língua portuguesa – nunca é de mais sublinhá-lo -, nós somos um entre outros que temos a responsabilidade de promover a nossa língua e a nossa cultura. Como Portugal não é o dono da língua portuguesa, todos temos uma responsabilidade. É claro que o Camões, que desenvolve esses objectivos em Portugal, é uma estrutura mais sólida, alargada, de promoção da língua. Estamos em mais de 80 países, temos inúmeros protocolos, leitorados, cátedras, enfim… É um instituto com 90 anos e a marca Camões está muito bem implantada mundo fora.
O Brasil também tem uma estrutura organizada para a promoção da sua cultura, não tanto como a nossa, mas está a fazer caminho. E depois há dois grandes países, com um enorme potencial, mas que ainda saíram há pouco tempo de guerras civis. Espero que, num dia não muito longínquo, se possam juntar a este esforço. Depois temos Cabo Verde, que tem a sede do Instituto Internacional de língua portuguesa, muito vocacionada para promover a língua nos países da CPLP e tem feito algum trabalho.
Ou seja, Portugal faz a sua parte…
Exactamente, mas não pode fazê-lo sozinho, nem deve, não é isso que queremos nem devemos. Não só porque é uma responsabilidade partilhada, mas também porque todas as variantes do Português que são trazidas por esses países são riquíssimas, acrescentam valor. Quando lemos Mia Couto, Ondjaki, Pepetela, estamos a enriquecer e a fortalecer a língua.
E também se quer evitar críticas sobre a colonização da língua?
Penso que essas críticas são completamente infundadas nos dias de hoje. A língua não é um património de Portugal, ainda que a geografia da língua tenha começado aqui, mas agora está na América e vai para África, tendo ainda dois territórios importantes: Macau na China e Goa na Índia. É um património riquíssimo e muito vasto.
Seria importante que o português se tornasse uma língua oficial da ONU, mas mesmo tendo um presidente português isso não parece uma prioridade. A questão é financeira ou política?
Eu não diria que está fora dos planos. É uma prioridade, sim, assumida por todos os países da CPLP, e o facto de a língua portuguesa ter um dia mundial é um passo muito significativo nesse caminho. Além disso, Portugal e o Brasil juntaram-se há dois anos para ensinar Português na Escola das Nações Unidas, em Nova Iorque. Por isso acho que estamos mais perto, e o facto de ter um português como secretário-geral das Nações Unidas contribui para a consciencialização da língua, embora não chegue. Há questões financeiras e de recursos humanos: temos de ter um núcleo muito alargado e sólido de tradutores-intérpretes. Temos de ter também uma pressão constante dos países para que o assunto não saia do radar. É verdade que não esperamos que aconteça amanhã, mas vai acontecer. Porque os países da CPLP juntos, em termos de demografia, território, economia e outros, são de facto uma potência.
A língua portuguesa tem muitas facetas, fala-se de maneiras muito diferentes consoante os continentes, para não dizer países. Isso dificulta o consenso linguístico? O Acordo Ortográfico ainda hoje é polémico…
Não me compete falar do Acordo Ortográfico, mas vou tentar explicar de uma maneira simples uma questão que é complexa e que são as diferentes modalidades em que se ensina o português: pode ser ensinado como língua materna, que é a da nossa mãe, do nosso país. Mas também pode ser ensinado como segunda língua, como em Cabo Verde, em que a primeira língua é o crioulo e a segunda o português, sendo língua oficial. Em Moçambique e em Timor Leste acontece a mesma coisa. Pode ainda ser ensinado como língua de herança quando, por exemplo na diáspora, é ensinado a um jovem que fala português em casa, mas no país onde vive fala outra língua. E depois há a língua estrangeira, para todos os que não são portugueses e a querem aprender. Tudo isto é ensinado pelo Camões: o instituto tem uma abrangência total nas várias modalidades de ensino da língua.
O Camões conseguiu atingir o objectivo de ter, até ao fim deste ano lectivo, o português a ser leccionado no ensino básico e secundário em 32 países?
Não só conseguiu como ultrapassou, neste momento são 33 países: 15 na Europa, dois na Ásia (China por via de Macau e Índia via Goa), seis na América e dez em África. E há outros dois que se devem juntar em breve, a Irlanda e o Peru. Isto mostra a vitalidade da língua portuguesa. Há dez anos tínhamos metade. A integração da língua portuguesa no ensino público estrangeiro, normalmente como opção no ensino secundário, mostra que há uma vontade desse país em que a língua portuguesa seja ensinada a um nível de escolaridade precoce. Isso acontece ou em países tradicionais da diáspora ou em países que estão colados geograficamente a países da CPLP – como o Senegal, onde temos quase 50 mil alunos e quase 400 professores senegaleses, ou seja, é o Senegal que faz o esforço.
No actual contexto de crise mundial, em que as viagens e a mobilidade foram reduzidas, o ensino do português foi afectado?
Foi afectado, como tudo foi. O ensino presencial foi congelado, está agora a ser retomado e acredito que no próximo ano lectivo voltará à normalidade. Mas o Camões tem imensas ferramentas digitais. Logo em Março/Abril lançámos o grupo presencial online para ajudar os professores e nestes últimos três meses tivemos imensa procura de cursos online de português para estrangeiros. Assinámos protocolos com diferentes entidades e fizemos um consórcio com cinco universidades portuguesas para cursos de Verão de Português e Cultura Portuguesa. Há imensa gente a inscrever-se de todo o mundo. E ainda estamos a desenvolver, com o Instituto Português do Oriente (IPOR), um curso online adaptado à nossa diáspora, com conteúdos que estão a ser desenvolvidos por docentes e queremos que esteja disponível no início do próximo ano lectivo. O Camões está a actuar em várias áreas.
O que o Camões está a projectar para a próxima estratégia da Cooperação Portuguesa para o Desenvolvimento, a partir de 2021?
Estamos neste momento a lançar o processo de preparação dessa estratégia, que terá de ser adaptada ao tempo em que vivemos com uma visão de uma década, no âmbito da agenda 2030, que mudou um bocadinho a concepção de cooperação geral. A educação e a saúde são as duas grandes áreas da cooperação de Portugal com os países parceiros da língua portuguesa. Nos últimos dez anos, só o Camões investiu cerca de 80 milhões de euros em educação: formação de professores, assessorias junto dos Ministérios da Educação. A nível global, em todas as áreas, Portugal investiu mais de 400 milhões. Só Cabo Verde teve um investimento total de 100 milhões de euros e talvez fique surpreendida por saber que o país que mais beneficiou da cooperação portuguesa foi Timor Leste, com 113 milhões de euros.
O Camões celebrou recentemente dois protocolos, um com a FLAD [Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento], fazendo mira aos EUA, e outro com a Fundação Oriente, atirando à China. Qual deve ser o papel de Portugal neste mundo que volta a ser bipolar, depois de anos de supremacia americana?
Começo por dizer que Portugal é um firme defensor do multilateralismo, tal como o secretário-geral das Nações Unidas, e cada vez mais é evidente que só o multilateralismo pode ajudar a resolver os problemas. É verdade que o multilateralismo está frágil, mas temos de nos agarrar a isto como princípio e doutrina. Os dois protocolos que citou são excelentes exemplos de geografias onde o Português está a crescer de um modo exponencial. Falei no Senegal, é o exemplo africano. Na Europa, Espanha é onde a procura do português mais cresce e depois temos os EUA e a China, via Macau, onde temos o Instituto Português do Oriente, juntamente com a Fundação Oriente, há já 30 anos. Neste momento já temos quase 50 universidades na China a ensinar Português, é impressionante, e estamos a alargar a outros países da região. A colaboração entre o Camões e a FLAD é antiga e foca-se sobretudo no ensino da língua, pois temos dezenas de milhares de alunos a aprender Português nos EUA. Quando fazemos isto em parceria, é sempre melhor, fazemos escala. O Camões tem centenas de parcerias por todo o mundo.
Hoje (18 de Junho) é um dia importante para a língua portuguesa: é o dia da em que se assinalam 10 anos sobre a morte do Nobel da Literatura José Saramago e o aniversário de Lídia Jorge…
Sem dúvida! Há muitas pessoas que entraram na língua portuguesa pela porta José Saramago e isso é muito importante. O Camões tem cinco cátedras no mundo com o nome José Saramago – na Europa e na Cidade do México. E vai ter em breve – é uma novidade – uma cátedra com o nome de Lídia Jorge. Será na Suíça, ainda estamos a fechar negociações. Vamos ter também uma cátedra de língua portuguesa em Lima, Peru.
Está há três anos na presidência do Camões. Ainda tem muito trabalho pela frente?
Muito trabalho pela frente. Tem sido muito gratificante, e a escolha de um diplomata para este lugar tem ajudado a afirmar o trabalho como central da política externa de Portugal. É uma etapa da minha vida profissional que cumprirei até ao último dia com empenho e sentido de missão, mas também com grande prazer e entusiasmo.
Entrevista da edição de 21 de junho de 2020 do jornal Público, conduzida pela jornalista Leonete Botelho