Por Amor à Língua – Contra a linguagem que por aí Circula, a nova publicação de Manuel Monteiro (editora Objectiva), constitui-se como um libelo contra os vícios que empobrecem a língua, «contra a linguagem que por aí circula», sustenta o subtítulo.
O núcleo da obra encontra-se organizado em 10 capítulos: oito abordam diversos problemas linguísticos, um questões relacionadas com o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) e o último conta algumas histórias relacionadas com a revisão de textos. Entre os problemas linguísticos analisados encontramos o pleonasmo, os excessos da adjetivação, as sonoridades viciosas, a seleção de verbos e questões de pontuação, o recurso aos estrangeirismos, alguns modismos e o desaparecimento da 2.ª pessoa do plural. A organização da obra assenta num percurso que procede a um diagnóstico realista de muitos problemas que caracterizam os usos da língua portuguesa. Realce-se, a título de exemplo, o capítulo intitulado “Adjectivos e lugares-comuns”, no qual o autor procede a um levantamento muito interessante de combinações nome-adjetivo que parecem constituir já expressões cristalizadas, sem espaço para a criatividade ou a inovação por parte de quem fala ou escreve.
As características desta publicação colocam, no entanto, alguns problemas ao leitor. Levanta-se, antes de mais, a questão da natureza indefinida da obra. Qualquer texto integra um género dominante que está ao serviço de determinados objetivos, seleciona um determinado público e adota, de modo mais ou menos livre, uma estrutura disponível, o que auxilia a interpretação do próprio texto nas suas várias dimensões. Por esta razão, reconhecemos imediatamente um texto de dicionário e antecipamos a sua natureza e objetivos. Ora, neste caso, estamos perante um texto híbrido que oscila entre o prontuário, a gramática normativa, o relato de experiências, a anedota, o dicionário de erros e até o comentário jocoso. Esta heterogeneidade estende-se também ao público visado: o texto tanto elege como interlocutor o tradutor, como o revisor textual, o escritor (ou o aprendiz), o jornalista ou até o leitor comum. Dada esta diversidade, o contexto visado pela mensagem é, por vezes, oscilante e difícil de descodificar: alguns conselhos/advertências dirigem-se a alunos, revisores ou escritores? Em que situação de escrita fazem mais sentido?
Questões sobre os estrangeirismos…
A perspetiva adotada nesta obra é dominantemente conservadora e normativista, o que fica evidente, por exemplo, na recusa do uso de estrangeirismos (exceto quando associados à designação de realidades novas). Esta opção (cuja bondade se reconhece se constituir uma posição moderada), quando extremada, acaba por esquecer que a dinâmica de evolução de uma língua passa, no seu percurso evolutivo, pela absorção de estrangeirismos, os quais vão perdendo a sua “nacionalidade”, a ponto de os falantes não os sentirem como “estrangeiros”. Foi este o percurso de alguns dos exemplos apresentados pelo autor. Veja-se o caso de elite ou de constatar, palavras que terão sido sentidas como estrangeirismos noutras fases da língua, mas que, atualmente, só serão reconhecidas nessa qualidade por um especialista. Aliás, a seleção de autores para provar a indignação dos académicos contra a importação de estrangeirismos é disso sintomática: Agostinho de Campos publicou a sua obra em 1944 e Sílva Túlio no século XIX. Sustentando a sua posição contra a adoção de estrangeirismos, o autor alerta ainda para o empobrecimento da língua materna desencadeado pelo uso excessivo de estrangeirismos. É verdade que estas palavras se sobrepõem a outras, autóctones, que ficam esquecidas, mas também não deixa de ser verdade que este adormecimento das palavras também ocorre pela excessiva exploração da polissemia de determinadas palavras bem portuguesas (coisa, dizer, meter, fazer, são disso exemplo) em detrimento de outras, disponíveis mas esquecidas ou desconhecidas.
O estilo dominantemente coloquial adotado pelo autor, que recusa o tom frio e normativo típico de um documento prescritivo, proporciona uma leitura agradável, pois as ideias fluem num ambiente de troca de impressões. Pena é que, por vezes, esta opção se associe à recursividade de ideias que, muito embora seja característica da oralidade que aqui se busca, compromete a clareza da exposição. Com efeito, o texto ganharia muito (e seria mais amigo do leitor) se as ideias fossem expostas de forma organizada, completa e sem repetições. A título ilustrativo, se nos centrarmos no capítulo dedicado ao Acordo Ortográfico de 1990, constatamos que o autor aborda onze vezes, de forma intermitente, a questão das consoantes mudas (pp. 138, 139, 150, 153, 158, 162, 163, 171, 174, 189 e 190). Opção desnecessária quando a ideia defendida fica clara logo nas duas primeiras páginas: o autor não concorda com o desaparecimento das consoantes mudas porque gera confusão ou estranheza nalguns usos; nem todos os dicionários seguem os mesmos critérios, o que alimenta as dúvidas. Até os mesmos exemplos se repetem: interrutor é referido três vezes com as mesmas intenções (pp. 139, 151 e 186) e não é caso único. Outras redundâncias podem ser apresentadas: a questão do hífen é abordada cinco vezes (pp. 142, 144, 153, 157 e 173), a acentuação dos verbos no pretérito perfeito é citada duas vezes, a acentuação de para e de formas verbais como veem duas vezes; a investigação de Maria Regina Rocha é citada quatro vezes, sempre para provar que aumentou o número de palavras escritas de forma diferente. Repetições que dão a ideia de uma escrita divagante e pouco sistemática. O próprio autor confessa, a certa altura, esta sua tendência: «não me canso de repetir» (p. 164). Uma abordagem mais sintética e sistematizada de determinados assuntos facilitaria a leitura. A propósito, acrescente-se que, numa publicação desta índole seria importante a inclusão de um índice remissivo que pudesse guiar o leitor numa pesquisa específica.
… e o Acordo Ortográfico de 1990
Como ficou já claro, a obra de Manuel Monteiro assume-se como crítica do AO90, posição que o autor fundamenta com a apresentação de inúmeros casos problemáticos levantados pela aplicação/interpretação do documento. Alerta para questões já muito discutidas, algumas pertinentes. Todavia, não é imparcial a escolha de assinalar incoerências entre dicionários e outros instrumentos lexicográficos como consequência do Acordo, esquecendo que antes deste documento a harmonia e a coerência também não reinavam no mundo da fixação ortográfica. Acresce ainda que, relativamente à questão da fixação ortográfica, o documento de referência é o Vocabulário Ortográfico do Português, disponível no Portal da Língua Portuguesa (tal como explicita a Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011), pelo que este não pode ser considerado no mesmo plano dos dicionários, tal como acontece nesta obra. Mais atual ainda será o Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa, no âmbito do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), que vem esclarecer muitas dúvidas que a aplicação do AO90 trouxe aos falantes, documento que se poderá consultar em caso de dúvidas similares às apresentadas. Ainda neste capítulo, fora de tom e algo despropositado é o exercício de “futurologia” que leva o autor a imaginar como (re)escreveriam os defensores do acordo determinados textos preexistentes (como a bula de um dado medicamento ou um artigo do Código da Estrada [!?] – cf. pp. 146-147).
É no interior do capítulo destinado ao AO90 que o autor critica a suposta posição do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa como defensor do documento (cf. p. 148). A afirmação abusiva que procura reduzir um projeto com 21 anos e com milhares de textos publicados e disponíveis a um bastião pró-Acordo, para assim o poder criticar, merece alguns esclarecimentos. O Ciberdúvidas sempre pautou a sua ação por uma posição de neutralidade relativamente às controvérsias em torno do AO90. A plataforma adotou o Acordo a partir do momento em que ele passou a ser lei em Portugal, como ficou expresso publicamente nas posições divulgadas aqui e aqui. Não obstante, no Ciberdúvidas há colaboradores que preferem a grafia anterior, e são livres de o fazer, acolhendo até uma rubrica dedicada à controvérsia em torno do AO90, onde se dá voz a diferentes posições, sem que haja lugar a nenhum tipo de seleção editorial ou de censura por parte dos responsáveis pelo projeto. Ainda relativamente a esta temática, refira-se que o Ciberdúvidas procura a coerência, pelo que não é honesto descontextualizar as palavras de um consultor para comprovar que existe contradição entre o que se defende em textos diferentes (cf. pp. 148-149). A bem da verdade, diga-se que o autor em questão assumiu sempre as suas posições de forma clara e crítica, tendo chegado inclusive a publicar um documento onde reflete sobre as possibilidades de coabitação entre a norma de 1945 e o AO90, adotando uma postura de sobriedade e honestidade intelectual.
É importante referir também que, numa publicação que se pretende rigorosa, ainda que informal, a inconsistência revelada nas citações, que abundam e que são pertinentes, não deveria ter lugar. O autor tanto cita indicando a fonte de forma completa, como o faz de forma pouco rigorosa, como se verifica em «Para Borges, uma palavra cara era um borrão na página» (p. 73) ou «as conclusões da investigação de Maria Regina Rocha» (p. 163), onde não há lugar à indicação da obra de onde foram extraídas as citações. Notas de rodapé e uma bibliografia final teriam resolvido a questão.
Por Amor à Língua – Contra a linguagem que por aí circula é, não obstante, uma obra com virtualidades, que pode afirmar a sua utilidade para tradutores, revisores linguísticos, professores e até (futuros) escritores, dado o recorte real dos usos da língua que oferece ao(s) leitor(es).
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