As grandes mudanças sentidas em Portugal ao longo de 2011 — a do Acordo Ortográfico e a do Acordo com a troika —, incidindo sobre a relação entre o (novo) vocabulário e a atual crise económica, são tema de reflexão do jornalista e escritor António Costa Santos numa crónica publicada na revista Tempo Livre (n.º 233, de janeiro 2012), que aqui se publica com a devida vénia ao autor e à publicação do Inatel. Manteve-se a grafia do texto original.
Jornais, rádios, blogues e televisões publicaram no mês passado os habituais “balanços do ano”, económicos, políticos e sociais. Houve balanços de tudo, como é costume; só não vimos feito o balanço da língua que falamos e é, cada vez mais, o último reduto da nossa soberania (a menos que as profecias da desgraça se confirmem e o euro acabe e o escudo volte, mas adiante). Quando 2011 foi um ano especialmente importante para o português, este silêncio quanto às palavras é muito estranho.
Para já, o ano que acabou foi o ano de todos os acordos. Lembremos apenas dois: o Acordo Ortográfico e o acordo com a troika. O primeiro cortou nas consoantes mudas e o segundo nos ordenados e subsídios de quem tem menos voz. O Ortográfico tem como objectivo o crescimento da importância da nossa língua a nível mundial; o da troika, o decréscimo das despesas do Estado e o recuo da economia nacional, com aumentos apenas na taxa de desemprego e no horário de trabalho.
Em 2011, as conversas de rua, de rádio, de café e autocarro ganharam um novo vocabulário. Se no princípio do ano aprendemos a falar em charters e se durante o Verão passámos a utilizar a expressão “isso é coisa que a mim não me assiste”, já o último semestre foi dominado pela gíria económico-financeira. Em vez de bola, como era costume, falamos de bolsa.
De súbito, a Dona Maria e o Senhor Manel começaram a discutir o rating do bacalhau, ao balcão da mercearia, e a ponderar a hipótese de recorrer a ajuda externa para pagar as batatas e a couve. Desemprego, infelizmente, já usávamos, mas tivemos de desenrolar a língua para dizer competitividade e desenterrar das brumas dos anos 80 o substantivo austeridade.
O termo imigrante, que andou na moda nos anos de crescimento económico, quando moldavos e ucranianos cá chegavam para ganhar a vida, foi quase apagado da linguagem da rua e substituído por emigrante, que é o que a geração à rasca, a que descobriu o sushi em 2011, se prepara para ser, desta vez com malas de cartão-multibanco, claro. Os Censos 2011 mostraram que a população estava em défice e só se mantinha um saldo positivo graças à entrada no país de trabalhadores estrangeiros. Se estes deixam de vir e ainda por cima começamos a sair... Talvez seja o nosso Fado, o nosso património imaterial, mas é triste se assim definharmos.
Para não se falar só em tristezas, outros dois termos entraram também para a linguagem do dia-a-dia em 2011: solidariedade e voluntariado, valha-nos isso.
Como dizia Vaclav Havel, o símbolo da Revolução de Veludo checoslovaca, que morreu nos últimos dias de 2011, «a esperança não é a convicção de que algo vai necessariamente correr bem, mas a certeza de que algo faz mesmo sentido, independentemente do resultado que venha a ter». Por isso, talvez seja de incluir esperança na lista das palavras mais usadas no ano da grande crise e esperar que todos os sacrifícios façam sentido.
In revista Tempo Livre, de janeiro de 2012, propriedade da Fundação Inatel