Oscar Wilde
Convivi recentemente durante 10 dias seguidos às vezes 10, 12 ou mais horas por dia com um grupo de 30 pessoas: 6 portugueses e 24 brasileiros. Tive assim oportunidade de perceber de perto as diferenças de uso do léxico entre falantes e escreventes do português dos dois lados do Atlântico. Sem que as mesmas, porém, tenham, em algum momento, impedido a nossa comunicação.
Uma das diferenças de que aqui deixo registo tem que ver com o sentido alargado que os Brasileiros dão ao substantivo translado, por oposição ao uso restrito que os Portugueses fazem do mesmo. É que, em Portugal, esse uso é praticamente circunscrito aos mortos, enquanto no Brasil ele se estende aos vivos.
Quando, em Portugal, nos referimos, por exemplo, ao transporte de alguém em viagem do aeroporto para o hotel ou vice-versa, normalmente pedimos de empréstimo ao inglês a palavra transfer ou transfers, que já se começa a ver, dado o seu uso intensivo, algumas vezes aportuguesada para transfere ou transferes, sem que pareça estar ainda dicionarizada. É bem certo que a mesma se podia substituir simplesmente por transporte ou até mesmo por transferência. Mas o certo é que se generalizou, no jargão turístico, o uso de transfer (transfers) ou do neologismo transfere (transferes). O português do Brasil, porém, resolveu bem a coisa, recuperando para o mesmo efeito um dos sentidos primitivos e permitidos da palavra translado. Parece, pois, a julgar por aquele grupo com o qual interagi, e facilmente confirmado através de um qualquer corpus ou mesmo do Google, usar-se comummente no Brasil a palavra translado, e ainda mais traslado, com o mesmo sentido de transfer. Algo que em Portugal seria quase herético dado o uso limitado da palavra a cadáveres.
Talvez isso se fique a dever ao facto de o substantivo translado não estar sequer dicionarizado em muitos dos grandes dicionários com origem em Portugal: não existe no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa (Academia), nem no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, nem no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo, nos quais se grafa apenas o substantivo transladação, cujo sentido, apesar de permitir a transferência de um lugar para o outro, se encontra muito conotado com a mudança de cadáver ou de restos mortais. Embora exista o traslado, o qual, apesar de possuir o mesmo sentido (Academia), se utiliza sobretudo, e às vezes em exclusivo, para a cópia de documentos (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).
A própria etimologia, porém, legitima em absoluto o uso do translado no sentido de transferir ou mudar algo ou alguém de um lado para o outro. É que os verbos transladar (derivado de translado, substantivo com origem em translatus, particípio passado de transferre) e transferir (transferre) têm inclusive a mesma origem latina.
Apesar de — até por esta ressonância — não me repugnar o transfer, cujo neologismo transfere, a continuar o seu uso intensivo, se irá certamente dicionarizar, o certo é que os falantes e escreventes do português do Brasil tornaram, e com propriedade, mais rico o uso da palavra translado, enquanto nós o confinámos em absoluto. A este acantonamento, não será certamente alheia a sua associação à ideia da morte, com qual convivemos mal e que nunca queremos misturar com a vida até mesmo no mundo das palavras.
* Com a colaboração de Carlos Rocha.