1. A guerra entre a Rússia e a Ucrânia está perto de perfazer um mês. Entre ofensivas, negociações, destruição e vítimas, ensaiam-se formas mais agressivas de ataque, como o recurso a mísseis hipersónicos, que a Rússia afirma ter usado para destruir, em terreno ucraniano, um armazém subterrâneo com armas e munições. Este míssil, designado Kinzhal pelos russos, é considerado hipersónico devido à velocidade que pode atingir (cinco vezes superior à velocidade do som). Acresce que estes mísseis são também mais difíceis de rastrear, pois, para além da velocidade que atingem, têm também a possibilidade de voar a baixas altitudes. Registe-se aqui que a palavra hipersónico é um composto que resulta da junção do prefixo hiper- à forma sónico. Esta palavra deverá grafar-se sem hífen, pois com hiper-, recorde-se, só haverá lugar a hífen se o segundo termo do composto começar por h- ou por r-.
O Ciberdúvidas tem, no seu acervo, diversos textos relacionados com usos de hiper-, que aqui recordamos: «A grafia com o prefixo hiper-», «O superlativo hipersensível», «O (in)congruente plural de híper», «Hipersexuado», «Sobre hiperligação, hipertexto e "sitegrafia"».
2. A guerra em curso recorda-nos também, a cada momento, os seus refugiados, sobretudo mulheres e crianças que fogem do seu país numa tentativa de salvar a vida, deixando para trás bens e toda uma existência. No plano linguístico, este facto convoca a diferença entre os conceitos de migrante e de refugiado, assunto que dá matéria ao apontamento da professora Carla Marques em O Nosso Idioma.
3. Apesar de a comunicação social centrar toda a sua atenção no conflito da Ucrânia, o que é certo é que neste mesmo país ainda se vive o problema da covid-19. A Ucrânia é dos países europeus com menos pessoas vacinadas e continua a registar números muito altos de infeções e de mortes. Este facto motiva a entrada do termo Ucrânia para a rubrica A covid-19 na língua, termo ao qual se juntam ainda as novas entradas Covifenz, glicoproteínas e Nuvaxovid.
4. No Consultório, sugere-se e justifica-se uma diferença de grafia entre afro-americano e afroamericano, explicitando os sentidos que se poderão associar a cada palavra. Noutra resposta, aborda-se, mais uma vez, a questão da identificação da natureza do pronome clítico se. Para além destas respostas, a nova atualização aborda ainda topónimos da Ucrânia, a grafia do termo «forma sonata», verbos derivados de prazer, a presença do pleonasmo em «pequeno pormenor» e a classificação da palavra que em «o silêncio assume a mesma importância que pode ter a música».
5. Acompanhando os múltiplos eventos que têm lugar para celebrar o centenário do nascimento de José Saramago, o Museu da Língua Portuguesa, situado em São Paulo, dedica o mês de março à Jornada Saramago, propondo leituras e reflexões em torno das obras do autor. No dia 24 de março, a escritora brasileira Andréa del Fuego dinamizará uma sessão de leitura acompanhada da obra O Evangelho segundo Jesus Cristo, um evento que poderá ser acompanhado no Facebook e no canal do YouTube do Museu, a partir das 19h.
6. Assinalou-se a 21 de março o Dia Mundial da Poesia. Um pouco por todo o lado, celebrou-se poder da palavra e a sua importância como veículo de cultura e meio de comunicação e reflexão sobre os mundos interior e exterior. Também neste espaço deixamos a nossa homenagem à língua e ao labor da língua, capaz de trazer à tona as suas formas mais belas. Fazemo-lo partilhando, com a devida vénia, um poema inédito do poeta e teólogo José Tolentino de Mendonça (divulgado no jornal Público):
As palavras são legíveis numa face, ilegíveis noutra
nenhuma das nossas frases sozinha quer dizer alguma coisa
o aparecer do mundo não se dá na transmissão de um significado
que se altera mas no movimento desapropriador, na passagem
outras espécies ouvem outros sons, veem outras cores
semeiam com a semente uma chama
um nome ilimitado exposto ao risco da perda
e aos seus arranjos recíprocos
onde a mais alta força se combina com a fragilidade extrema
e essa é a língua matinal do pensamento
nós porém iludidos cremos ainda na redução
como se fosse a redução toda a ciência possível
Não se trata de saber o que é
cheio de passado para colorir o presente
o destino revela-se surpreendente ainda
devemos antes interrogar a inocência
a sua mão de dedos mutilados sobre a parede:
será uma folha intacta menos folha do que uma folha devorada?
não haverá outras hipóteses para o fotograma das formas
e mil modos inéditos de amotinar a vida?
se fizéssemos um registo integral, camada a camada,
se parássemos a escutar uma única e solitária voz humana
no seu esplendor secreto, na sua incandescência, no seu dilúvio mais recuado
recomeçaríamos a história do mundo
Só o ato de se desnudar cumpre a mutação
pois crê no prodígio
e procura-o
Ocasião também para recordar o poeta Gastão Cruz, recentemente falecido (1941-2022). Autor de inúmeras obras poéticas e tradutor de autores como Blake ou Shakespeare, dedicou a vida à literatura e à cultura, tendo sido agraciado com diversos prémios, como o Grande Prémio de Poesia Maria Amália Vaz de Carvalho.