Começa a preocupar-me o ritmo com que os erros grosseiros se vão instalando na língua. Já não bastam o «dia solarengo» em vez de soalheiro, a cessão do contrato» em vez de cessação, a «factura descriminada» em vez de discriminada», e agora também o «despoletar» significando «deflagrar, desencadear».
Vamos primeiro aos factos lexicais.
Espoleta é um termo militar que designa o dispositivo que produz a detonação das cargas explosivas, como por exemplo, uma granada. Quando activamos esse dispositivo, usamos o verbo espoletar, que significa «pôr a espoleta em», logo, «fazer deflagrar a granada». Se tirarmos a espoleta, a granada fica inactiva.1 Para esta acção, usamos o verbo despoletar, que significa, portanto, «tirar a espoleta a; tornar impossível o disparo de»; «(Figurado) anular algo, travar o desencadeamento de».2
Agora, os factos morfológicos.
Despoletar é um verbo derivado por prefixação, por intermédio do prefixo des-, que, tal como tantos outros elementos gramaticais, é polissémico, ou seja, veicula diferentes significados dependendo da base a que se agrega. Pode significar:
1. Negação: desaprovar (= «não aprovar»); desleal (= «não leal»);
2. Ação contrária: desmentir (= «acção inversa de mentir); desarrumar (acção inversa de arrumar).
Ora, é neste segundo quadro semântico que o verbo despoletar se inclui, exprimindo precisamente a ação contrária de espoletar: «tirar a espoleta a, travando ou impedindo o disparo de».
O significado de reforço, de intensidade que o prefixo des- passou a assumir (por exemplo, na palavra desinquieto) é resultado da produtividade deste prefixo, mas não é esse significado que despoletar acarreta, como muita gente julga.
Por conseguinte, os factos falam por si. "Despoletar", como sinónimo de desencadear, é um uso incorreto da língua, apesar de alguns dicionários registarem este barbarismo, devido ao uso generalizado dos falantes.
Resta uma tomada de decisão por parte da comunicação social: ou continuar a difundir o erro ou, pelo contrário, privilegiar a correcção, o bom uso da língua, que é o que todos nós esperamos daquilo que acreditamos ser uma referência — como deve ser o caso da agência de notícias portuguesa Lusa.2
1 Sobre o recorrente equívoco entre a espoleta e a cavilha de uma granada — e, portanto, sobre o mecanismo que faz ou não deflagrá-la — cf. Tirar a espoleta ao assunto + Tirar a espoleta + Despoletar + Espoletar. E, ainda, a elucidativa explicação no blogue Filipa de Lencastre no comentário de 79-84, às 00:23 de 6-1-2004.
2 Vide, por exemplo, o Grande Dicionário da Porto Editora", o Grande Dicionário Universal da Língua Portuguesa e o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.