« (...) A vantagem dos livros (diferentes no seu estatuto, úteis e discutíveis) publicados por autoridades linguísticas e por divulgadores de variadas qualificações, como Rodrigues Lapa, Cândido de Figueiredo, João de Araújo Correia, José Pedro Machado, Edite Estrela, João Andrade Peres e Telmo Móia, entre outros, é a de mostrar aspectos (ou «áreas críticas») do que se passa na língua escrita e falada. Sem esquecermos gramáticas como a de Celso Cunha e Lindley Cintra, nem o trabalho do sítio Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. (...)»
Um livro recente procede à recolha e correcção de erros (pelo menos no entender do autor) verificados em Portugal na escrita e na fala. Refiro-me a Gente Famosa Continua a Dar Pontapés na Gramática – Manual de Erros e Correcções de Linguagem, de Lauro Portugal (Roma Editora, 2006, 222 págs.). Vem na sequência de outro livro do mesmo, Gente Famosa Dá Pontapés na Gramática, publicado em 2004, mencionado no «Actual» em crónica minha (18-9-2004) e comentado em brevíssima recensão por Fernando Venâncio (5-2-2005).
Quanto a jornais, nesta recolha surgem exemplos do "Expresso", do «JL» e do «Público», que na anterior tinham escapado ao castigo. Aparecem também editoras e universidades. Não poderei julgar em pormenor as escolhas e correcções propostas; concordo com muitas, mas discordo por exemplo do reparo a «islamista», que na terminologia política actual não é sinónimo de «islamita» (muçulmano). Como jornalista, observo fenómenos semelhantes. Ignoro se apontá-los à reprovação pública ajuda ao aperfeiçoamento dos que escrevem e falam, e serem «famosos» é talvez secundário; o principal é que os dislates surjam em obras ou media de grande difusão. Esperemos que mesmo um inventário parcial suscite a interpretação dos «pontapés» (sejam quais forem as designações que os linguistas lhes atribuam) e alguma lição assimilável por políticos.
Os maus exemplos que Lauro Portugal regista farão sorrir muitos dos que tiveram aproveitamento no velho ensino primário (4.ª classe). Alguns não têm que ver com ortografia nem com sintaxe; são frases irreflectidas, como a do futebolista que diz «Nós somos humanos como as pessoas». Outros, porém, são erros dificilmente perdoáveis a profissionais da escrita (e/ou da fala em meios de comunicação com padrões mínimos de qualidade), como os jornalistas que dizem «Está a arder uma vasta área de pinhal de eucaliptos», ou «As chamas estavam a arder».
Parte dos erros diz respeito a palavras mal escritas, como «atraiem» e «caiem» em vez de «atraem» e «caem», ou «descriminação» em vez de «discriminação». São «erros grassos» (gralha de um diário do dia 6-3).
Quando revia provas no diário "República", esses erros eram emendados por revisores, por vezes ex-tipógrafos que "só" tinham a instrução primária. Hoje são cometidos até por licenciados, mesmo em «Letras» ou Línguas e Literaturas Modernas. E por escritores e jornalistas.
Convém notar que a reacção de muitos linguistas é mais a de registar e classificar esses e outros fenómenos, tidos por naturais (uma vez que acontecem), e não a de estudar as formas de atenuá-los em nome da «correcção», da «norma» ou de outros termos considerados mais científicos. Nesse campo, não vale a pena esperar muito das universidades, cujos centros de linguística continuarão a estudá-los com rigor e, no fundo, indiferença.
Quanto aos dicionaristas, melhores ou piores, irão registando as inovações mais frequentes e, no limite, eliminando as formas antes «correctas» mas caídas em desuso para substituí-las por outras que hoje julgamos erradas. A atitude descritiva e fenomenológica prevalece sobre a intenção normativa. Como «o povo faz a língua», a moral da história é a vitória dos menos alfabetizados, desde que se imponham no campo dos 'media'. Os demais tendem a encolher os ombros. Dir-se-á que os cientistas têm outras tarefas, mas a passividade é inaceitável nos pedagogos e sobretudo nos responsáveis governamentais e escolares.
No ensino (principalmente no básico e no secundário) não pode valer tudo, o que o tornaria impossível ou inútil. Se, em ciências como a Geografia, não aceitamos a ideia de que a China tem fronteiras com o México, e em História, ciência «não exacta», recusamos a data de 1842 para a Revolução Francesa (tal como em Aritmética negamos que 3 vezes 9 sejam 28), como é que em Português, ou em Língua Portuguesa, aceitamos tamanha flutuação e tanta imprecisão?
O ensino básico será momento para escrita tão «criativa»? Violar regras de gramática pode ser muito interessante, mas depois de aprendê-las. Também a História contrafactual é fascinante, mas pressupõe conhecimento dos facto históricos para depois imaginar o que poderia ter acontecido se não tivessem... acontecido. Toda a conversa oficial e oficiosa sobre «requalificação» do ensino em Portugal será apenas conversa, menosprezando a aprendizagem da língua e da literatura? As deficiências da escolaridade repercutem-se e ampliam-se nos meios de comunicação, nas traduções de livros, nas legendas de filmes.
Quanto ao que lemos nos jornais e nos livros, a discussão está há muito descentrada e desfocada. Muitas normas (porque elas continuam a existir, mesmo «sob forma tentada», como diria um jurista) ocupam-se de coisas ridículas, como proibir que se escreva «stress», determinar que «rei» e «reino» se grafem com minúsculas e «Presidente da República» com maiúsculas», decidir que «Bagdad» tem de ser «Bagdade» (e amanhã,se calhar, «Baguedade»), etc. Parte do esforço dos prontuários para revisores e dos «livros de estilo» para jornalistas consome-se em ninharias, por vezes sem sustentação científica de base. Pegue-se num jornal de referência. Pode ser o do dia em que comecei este artigo.
Porquê «descriminações com base sexual»? Não deveria ser «discriminações»? Porquê «há 37 anos atrás»? Não basta «há 37 anos»? Ou, na edição anterior, porquê «imundície» na pág. 5 e «imundice» na pág. 7? Se acham que tanto faz, contribuem para a desorientação dos leitores (incluindo professores e estudantes).
Não se veja nestas observações a obsessão com a ortografia que tem existido em Portugal. Quando há reuniões «lusófonas» sobre cooperação no ensino e na difusão do português, a falta de uma eficaz política da língua é geralmente dissimulada com questões de ortografia, como se esse fosse o principal problema, se é que é um problema real (que não aflige britânicos e norte-americanos), e logo vem a insistência no acordo ortográfico». Mas que dizer de um título como «Slobo terá tomado remédios que lhe agravaram a saúde»? O que se agravou não foi a doença?
Vem a propósito lembrar outro hábito de vários jornais, escrevendo que uma situação ou um problema «se agudizou». Querem dizer que o problema se agravou; a diferença entre graves e agudos esbateu-se ao passar dos sons para a escrita...
A vantagem dos livros (diferentes no seu estatuto, úteis e discutíveis) publicados por autoridades linguísticas e por divulgadores de variadas qualificações, como Rodrigues Lapa, Cândido de Figueiredo, João de Araújo Correia, José Pedro Machado, Edite Estrela, João Andrade Peres e Telmo Móia, entre outros, é a de mostrar aspectos (ou «áreas críticas») do que se passa na língua escrita e falada. Sem esquecermos gramáticas como a de Celso Cunha e Lindley Cintra, nem o trabalho do sítio Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. Embora alguns filólogos se esfalfem (a meu ver demasiado) a aportuguesar «estrangeirismos», o mais importante é permitirem entender que nem tudo se equivale, que há e haverá sempre formas preferíveis a outras (a par das totalmente indefensáveis). Há quem diga que «escrever bem» é expressão sem sentido. Mas mesmo quem o pensa prefere uns autores a outros e hierarquiza-os segundo critérios que incluem a qualidade da escrita e não só o interesse da narrativa ou a profundidade das reflexões (de resto, elementos não inteiramente dissociáveis). A proliferação do disparate e da incongruência revela os perigos de tomar os textos dos media, em vez dos melhores textos de escritores, como exemplos para uso escolar de quem aprende português.
Mesmo um político pouco erudito pode compreender, se não for estúpido, que perante a amplitude do desvario é preciso ser mais exigente quanto a programas e manuais. Sem isso não teremos melhores professores nem melhores alunos. E os responsáveis jornalísticos deviam assumir a sua responsabilidade pela «cultura» do descuido e da incompetência nestas matérias.
Artigo publicado no caderno "Actual" do semanário "Expresso", de 18 de Março de 2006