«O artigo 42.º [da Constituição turca] proíbe explicitamente o ensino aos cidadãos turcos de qualquer idioma que não o turco como língua materna, disposição que é incompatível com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (de que a Turquia foi um dos primeiros signatários, em 1948) e com as políticas do Conselho da Europa (a que pertence). A interpretação restritiva deste artigo leva as minorias linguísticas, nomeadamente a curda, a enfrentar sérias restrições ao ensino das suas línguas [...].»
Ouve-se falar da Turquia, mas, a avaliar por mim própria, o conhecimento que se tem desse extenso país baseia-se em ideias e notícias descontextualizadas: país geográfica e culturalmente encravado entre a Europa e a Ásia, pertencente à OTAN, com alguma instabilidade política, que tem desde 2014 o peculiar presidente Recep Erdogan e mudou o seu regime de parlamentar para presidencial em 2017. Ultimamente, a Turquia adquiriu notoriedade devido ao veto à entrada de Finlândia e Suécia na OTAN e à mediação na guerra entre a Ucrânia e a Rússia. A sua situação linguística, apesar de importante caso de estudo para a sociolinguística, sobre o qual há tanto a dizer, é basicamente desconhecida.
A República da Turquia, independente desde 1923, é um país euro-asiático, com uma parte europeia (no extremo sudeste da Europa) e uma asiática (no extremo ocidental da Ásia). É banhada pelos mares Mediterrâneo, a sul, e Negro, a norte; confina com Grécia e Bulgária do lado europeu e com Geórgia, Arménia, Irão, Iraque e Síria, do lado asiático. Não surpreende, assim, que o país constitua lugar de encontro de etnias, culturas e línguas, cujos direitos linguísticos são muitas vezes desconsiderados.
A população ultrapassa os 84,5 milhões de almas e mais de um terço vive em cinco cidades: Istambul (antiga Bizâncio e Constantinopla, mais populosa do país e quarta do mundo), Ancara (a capital), Esmirna (cujo nome vem do grego smyrne, «especiaria», étimo da palavra portuguesa mirra), Bursa e Antália. O crescimento da língua turca não é certamente alheio à concentração da população nas cidades, mas parece dever-se fundamentalmente às políticas linguísticas restritivas adotadas no país.
O turco é a única língua oficial, falada por toda a população, materna para entre 80% e 90% da mesma; é ainda falado em regiões dos países vizinhos e especialmente na Alemanha, Estados Unidos, França, Áustria e Países Baixos, principais destinos da emigração turca. O curdo é a segunda língua, materna ou franca, para cerca de 14%, especialmente no sudoeste da Anatólia.
O artigo 10.º da Constituição da República da Turquia (1982) garante igualdade de todos os cidadãos perante a lei e proíbe qualquer discriminação com base em «língua, raça, cor, sexo, opinião política, convicções filosóficas ou crenças religiosas». Porém, o artigo 42.º proíbe explicitamente o ensino aos cidadãos turcos de qualquer idioma que não o turco como língua materna, disposição que é incompatível com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (de que a Turquia foi um dos primeiros signatários, em 1948) e com as políticas do Conselho da Europa (a que pertence). A interpretação restritiva deste artigo leva as minorias linguísticas, nomeadamente a curda, a enfrentar sérias restrições ao ensino das suas línguas; só as minorias grega, arménia e hebraica têm as suas línguas reconhecidas e ensinadas pelo Estado desde 1923 (Tratado de Lausana). Os movimentos, internos e externos, para garantir o ensino da língua materna às minorias têm sido silenciados. O alemão, o francês e o inglês são línguas estrangeiras de opção.
Tem-se assistido a ligeiras mudanças na situação. Em 2012, o Ministério da Educação incluiu o curdo (baseado nos dialetos kurmanji e zazaki) como opcional, a partir do 5.º ano; em 2013 foi a vez do abcázio, circassiano ocidental (adhyge), georgiano-padrão e laz; em 2017, do albanês e do bósnio, línguas de imigração. Já em 2016-2017 o ensino do árabe como língua segunda foi introduzido nas escolas a partir do 2.º ano.
Crónica publicada no Diário de Notícias em 10 de outubro de 2022.