« (...) Não há palavras neutras, dizia Roland Barthes. Nas notícias, nos discursos – em lado nenhum. E isto é uma evidência que infelizmente tem de se repetir para que as pessoas não a esqueçam. (...)»
1. Qualquer palavra, qualquer escolha que se faça de verbo, substantivo, adjectivo, ou até de uma simples conjunção, é uma escolha política, no sentido geral e estrito desta palavra.
Não há palavras neutras, dizia Roland Barthes. Nas notícias, nos discursos – em lado nenhum. E isto é uma evidência que infelizmente tem de se repetir para que as pessoas não a esqueçam.
2. Uma expressão muito comum fala em torturar números até eles dizerem o que queremos.
É evidente que também se pode torturar a linguagem até ela dizer o que queremos.
Um político que minta é um completo desastrado a nível linguístico (não falemos aqui de questões éticas, apenas de linguagem).
Um político pode sempre não mentir, distorcendo a linguagem de forma a que esta (como aparente descrição da realidade) o favoreça. Qual é a parte da vasta realidade de um facto que escolhemos para que a linguagem fale e nos defenda?
Num exemplo extremo, Estaline poderia dizer, dos homens enviados para os terríveis campos de concentração da Sibéria, que eles «estavam em período de deslocação» – e não estaria a mentir. Estaria a dizer a verdade – parte da verdade, claro, e eliminando a essência da situação real. Aquela era uma deslocação, sim, mas contra vontade e para uma prisão de onde provavelmente os deslocados sairiam loucos ou em forma pasmada e mansa de cadáver. Mas não precisaria de mentir, precisaria apenas de torturar a linguagem até ela se transformar numa aliada.
3. Numa outra ocasião seria interessante falar com mais pormenor da diferença radical das possibilidades da linguagem diante do mesmo facto.
Mas imaginemos, rapidamente, e só como mero exemplo, um facto: alguém que teve 9800 votos numa qualquer votação.
9800 votos é o facto. E há, depois, infinitas possibilidades de falar sobre esse facto. A linguagem pode dizer mil frases distintas – e muitas vezes opostas – sobre o mesmo acontecimento, não mentindo.
De uma forma simples e rápida:
Teve quase 10 mil votos – valorização.
Não chegou aos 10 mil votos – desvalorização.
Nove milhões, novecentos e noventa mil não votaram nele – desvalorização elevada ou ironia.
E poderíamos continuar com muitíssimas outras variações de linguagem.
Imaginemos outro facto hipotético em redor de questões médicas: cerca de 30 mil idosos vacinados.
Podemos escrever, sobre esse facto, que quase 30 mil idosos JÁ foram vacinados.
Ou escrever MAIS DE 29 mil idosos já foram vacinados.
E estamos de forma evidente a valorizar a acção, transmitindo a sensação de que são muitos idosos, esses 30 mil.
Mas também podemos escrever em redor do mesmo facto (30 mil idosos vacinados):
POUCO MAIS de 30 mil idosos foram vacinados.
Ou:
APENAS 30 mil idosos foram vacinados.
E a mudança de uma micropartícula da linguagem – JÁ ou APENAS – muda por completo a percepção e apreciação que fazemos do facto.
O leitor escolhe a palavra JÁ ou a palavra APENAS? É uma escolha que coloca dois leitores em interpretações completamente opostas da realidade. E há infinitas outras.
Também podemos falar, para o mesmo facto real, de terem sido 30 mil idosos vacinados, do que falta. E escrever, por exemplo:
«Faltam ser vacinados mais de um milhão e novecentos mil idosos.»
E continuamos a dizer a verdade, agora de outro ângulo.
Quantos ângulos possíveis tem a linguagem quando relata um facto? Muito mais do que 360, sem dúvida.
Que frases escolhes para descrever a realidade, eis a questão.
Que verbos, substantivos ou meras conjunçõezinhas decisivas escolhem os jornais, os políticos, os cidadãos para descrever a realidade?
Até um “enquanto” ou um “mas” são palavras políticas.
4.Todos os cidadãos deveriam ter lições de linguagem como quem tem lições de artes marciais para autodefesa.
Nas democracias, felizmente, não é urgente aprender karaté, porque os brutamontes que nos assaltam fisicamente não são assim tantos. Mas estamos constantemente a ser assaltados – física e intelectualmente – através da linguagem.
Um cidadão lúcido em democracia ou treina os músculos da linguagem ou é simplesmente um tonto.
Crónica publicado na Revista E do semanário Expresso no dia 5 de fevereiro de 2021. Por opção do autor, segue a norma ortográfica de 1945.