Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
 
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Textos de autores lusófonos sobre a língua portuguesa, de diferentes épocas.

Alguns anos atrás, em Campolide, Lisboa, onde moro, deparei-me com um homem de certa idade, a coxear e a tentar driblar a chuva e a ventania. Como no poema de Fernando Pessoa, eu iria adiante, ele passaria também no sentido contrário, e nunca haveria um registo do transeunte anónimo que enfrentava a sua circunstância, ou seja, um quase fim de vida a arrastar-se dolorosamente pela rua. Mas não foi assim, porque assim não quiseram os fados da história. Ele, ao passar, disse-me num tom que adivi...

O avô, hemiplégico, sentado. A avó na ronda do quarto, entre a porta e a janela abertas.

O Verão escorrendo.

Então, Maria, não levas a goropelha1?

Olha, o senhor engenheiro...

A saia e o casaco dela, a malinha a condizer. A desmemória também, numa espécie de alívio expresso no sorriso inocente. O esforço dele para se erguer. Nos longos preparos para o passeio de domingo à tarde, bordejando o mar e o seu perfil, entretinham a velhice.

- Pai…
- Hmmm?
- Como é o feminino de sexo?
- O quê?
- O feminino de sexo.
- Não tem.
- Sexo não tem feminino?
- Não.
- Só tem sexo masculino?
- É. Quer dizer, não. Existem dois sexos. Masculino e feminino.
- E como é o feminino de sexo?
- Não tem feminino. Sexo é sempre masculino.
- Mas tu mesmo disse que tem sexo masculino e feminino.
- O sexo pode ser masculino ou feminino. A palavra "sexo" é masculina. O sexo masculino, o sexo feminino.
- Não devi...


Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém — mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar.
Para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.


Língua:
língua de fala;
língua recebida lábio
a lábio; beijo
ou sílaba;
clara, leve, limpa;
língua
da água, da terra, de cal;
materna casa da alegria
e da mágoa;
dança do sol e do sal;
língua em que escrevo;
ou antes: falo.

Meu amigo Albino Lapa:

 

Que pena eu tenho de não ser um escritor no género de Francis Carco só para me arvorar competente padroeiro do trabalho que me anuncia! Em verdade sou um escritor circunspecto e pompier. Há quem jure que me tem visto de noite, vestido, como um alquimista, de balandrau preto, óculos pretos, e uma lupa de bom aumento, sobre os palimpsestos da língua, à procura de termos arrevesados, visigóticos, turdetanos, com que rechear os meus romances de tamancos e...


A linguagem
na ponta da língua
tão fácil de falar
e de entender.A linguagem
na superfície estrelada de letras,
sabe lá o que ela quer dizer?
Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,
e vai desmatando
o amazonas de minha ignorância.
Figuras de gramática, equipáticas,
atropelam-me, aturdem-me, seqüestram-me.
Já esqueci a língua em que comia,
em que pedia para ir lá fora,
em que levava e dava pontapé,
a língua, breve língua entrecortada
do namoro com a prima.
O português são dois; o outro, mistério.

 


Com palavras me ergo em cada dia!
Com palavras lavo, nas manhãs, o rosto
E saio para a rua.
Com palavras — inaudíveis — grito
Para rasgar os risos que nos cercam.

Ah!, de palavras estamos todos cheios.
Possuímos arquivos, sabemo-las de cor
Em quatro ou cinco línguas.
Tomamo-las à noite em comprimidos
Para dormir o cansaço.

As palavras embrulham-se na língua.
As mais puras transformam-se, violáceas,
Roxas de silêncio. De que servem
Asfixiadas ...

Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie — nem sequer mental ou de sonho —, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de F...

Por Ondjaki

Porque a História também se faz ao contrário, o caçador quando pressente o perigo é tarde demais e saiu já caçado, num golpe de futura sorte ou carnaval linguístico; e o oceano, quintal vasto e multiplicador de margens, convida a viagens com direito a retorno melhorado e banquete renovador. Depois dos gestos, a linguagem falada é a boca sincera dos sentimentos e a cultura apanha boleia para ir mais longe, enfeitiçar outros mundos e mascarar-se de novos conteúdos.