Um consulente do Brasil – Rafael Blusky, de Salvador – enviou ao Ciberdúvidas a seguinte pergunta:
«Gostaria de saber o motivo da prestação periódica a ser paga às companhias de seguro ser chamada de prêmio. Ao consultar o dicionário, aparentemente nenhum dos significados da palavra se assemelha ao que é usado desta forma, à exceção do que define o prêmio como tendo este sentido.»
Gonçalo Neves acedeu em dar uma resposta, mas esta depressa se tornou o interessante estudo que a seguir se apresenta, no qual o autor desvenda a história da palavra prémio numa área profissional, a dos seguros.
Chama-se prémio ao valor pago pelo tomador de um seguro a uma seguradora ou companhia de seguros como contrapartida pelas coberturas abrangidas pelo respetivo contrato. Trata-se de um termo técnico próprio da atividade seguradora, utilizado não só em português, mas também em várias línguas europeias, e até nalgumas asiáticas, obviamente com as respetivas matizes de ortografia e pronúncia: premium (inglês, malaio), premio (italiano), Prämie (alemão), premie (africânder, holandês, norueguês, sueco), præmie (dinamarquês), premija (croata), premi (indonésio), премия (russo), премія (bielorrusso), премија (macedónio).
Todas estas formas entroncam, de forma direta ou indireta, no latim praemium (também grafado præmium), vocábulo com longa tradição entre tratadistas de vários países que se serviram da língua de Cícero para discorrer sobre a atividade seguradora pelo menos até ao final da primeira metade do século XIX. A primeira referência a praemium que consegui encontrar com esta aceção data de 1687, ano em que veio a lume, em Jena, a segunda edição de Syntagma Juris Civilis, tratado de direito civil da autoria de Georg Adam Struve (1619-1692), famoso jurisconsulto alemão, no qual se pode ler a seguinte definição de seguro (p. 919):
assecuratio [...] est contractus, quo præmium datur, ut quis suscipiat periculum mercium alio transvehendarum («o seguro é um contrato mediante o qual é concedido um prémio, para que alguém assuma o risco inerente ao transporte de mercadorias»).
Saliente-se, nesta definição, o uso do vocábulo assecuratio («seguro»), totalmente desconhecido do latim clássico, e de periculum («risco»), que no latim clássico já apresentava esta aceção, entre outras. Refira-se ainda que esta obra teve uma primeira edição em 1658 (outros autores referem o intervalo 1655-1663), à qual, porém, não tive acesso, pelo que desconheço se o autor já lançara mão do vocábulo praemium nessa altura.
Já em meados do século seguinte, numa tese de doutoramento defendida pelo alemão Franciscus Michael Poppe no dia 19 de outubro de 1752, na Universidade de Gotinga, com o sugestivo título De litium assecurationis causa orientium decisione («Sobre a resolução de litígios decorrentes da atividade seguradora»), podemos ler uma definição de seguro mais lata que a anterior (p. 2):
assecuratio est contractus, quo quis periculum alterius [...] pro certo præmio in se suscipit («o seguro é um contrato mediante o qual alguém assume o risco de outrem a troco de determinado prémio»).
Nesta definição, além dos termos assecuratio, periculum e praemium, que figuram igualmente na citação anterior, encontramos também a expressão periculum in se suscipere («assumir o risco»), a qual, como veremos, era recorrente entre os tratadistas que então discorriam em latim (por vezes abreviada em periculum suscipere).
No mesmo ano, o jurisconsulto alemão Samuel Strykii (1640-1710) e o seu filho Jo. Samuelis Strykii, nos volumes XIII e XIV do seu Supplementum dissertationum et operum, sive tractatuum jurid. ante hac editorum et ineditorum («Suplemento das dissertações e obras ou tratados jurídicos até agora editados ou inéditos») realçam a importância do prémio num contrato de seguro (p. 159):
Cæterum in ipso Assecurationis contractu id præcipue agitur, ut Assecurator pro certo præmio, e. g. duodecim pro centum, [...] omne in se recipiat periculum («De resto, o que mais importa no próprio contrato de Seguro é que o Segurador, a troco de determinado prémio – por exemplo, doze por cento – assuma todo o risco»).
O uso de pretium nos tratados medievais e renascentistas
No entanto, ao contrário de assecuratio e periculum, o termo praemium não fazia parte do vocabulário utilizado pelos primeiros tratadistas, os quais preferiam recorrer ao termo pretium («preço»), que muitas vezes grafavam precium, de acordo com a pronúncia da época. A referência mais antiga que encontrei remonta a 1338, data em que foi dada à estampa a Summa Bartolina ou Pisanella, obra moralista do escritor toscano e frade dominicano Bartolomeo da San Concordio (1262-1347), na qual este faz uso da expressão periculi precium («o preço do risco»).
A preferência pelo termo pretium manteve-se pelo menos até meados do século XVI. Em 1552, sai a lume, em Veneza, a primeira edição do Tractatus de assecurationibus et sponsionibus mercatorum («Tratado dos seguros e promessas dos mercadores»), da autoria de Pedro de Santarém, ou Pedro Santerna, jurista português que viveu no tempo do rei D. Manuel I, e do qual se desconhecem as datas de nascimento e morte. A obra teve assinalável êxito, pois conheceu, «entre 1552 e 1669, cerca de uma vintena de edições, em locais tão diversos como Lyon, Antuérpia; Veneza, Colónia e Amesterdão» (Dicionário Enciclopédico da História de Portugal, Publicações Alfa, 1993, Vol. II, p. 206). Na minha pesquisa, porém, só consegui coligir dados bibliográficos referentes às edições de 1552, 1554 e 1599. A que compulsei é a segunda (1554), dada à estampa em Antuérpia. Trata-se de um tomo de 83 folhas, em que apenas estas estão numeradas, mas não as páginas, a que acresce um índice de 11 folhas não numeradas, e que pode ser consultado aqui, página a página.
Esta importante obra, cuja primeira tradução portuguesa, da autoria de Miguel Pinto Menezes, só foi publicada em 1958, acompanhada de um estudo de Moses Bensabat Amzalak (1892-1978), é um dos primeiros tratados que versa sobre a atividade seguradora de forma criteriosa, sistemática e minuciosa, valendo-se da experiência acumulada resultante de viagens marítimas que se iam tornando cada vez mais frequentes e mais complexas. Na introdução (fol. 3/1), o autor puxa pelos galões, dizendo-se utriusq. Iur. doctor, «doutor de ambos os direitos», ou seja, do civil e do canónico, e confessa ter empreendido a obra, a que modestamente chama opusculum (apesar de ter mais de 160 páginas), «induzido por variadas e frequentes manifestações de afeto dos mercadores» (variis atque assiduis Mercatorum illecebris adductus). Informa-nos ainda que as matérias tratadas na sua obra, ou seja, as assecurationes («seguros») e sponsiones («promessas verbais»), «se chamam-se Apostas em língua vulgar», ou seja, em português (vulgari sermone Apostas nuncupantur). Esta nomenclatura, porém, afasta-se da de autores posteriores, que procuram destrinçar claramente as assecurationes das sponsiones, equiparando estas últimas às gageures em voga em França e considerando-as impróprias da atividade seguradora stricto sensu.
Neste tratado, o autor português não utiliza ainda o termo praemium, recorrendo sempre a pretium, que grafa invariavelmente precium, como nesta definição de contrato de seguro (fol. 2/1): Conventio, qua unus alterius infortunium in se suscipit, precio periculi convento («Pacto, mediante o qual uma das parte assume o infortúnio da outra depois de acordar um prémio inerente ao risco»). Eis uma pequena lista de outros termos e expressões empregues por Pedro de Santarém:
in casu adversæ fortunæ (fol. 2/1): «em caso de sinistro»;
assecurationis materia (fol. 2/1): «atividade seguradora»;
Promissor periculi non tenetur nisi [...] (fol. 19/1): «Quem segura o risco só assume a responsabilidade se [...]»;
ad precium periculi agere (fol. 19/2): «acionar o seguro»;
intentio contrahentium (fol. 19/2): «a intenção dos contraentes»;
in certo tempore (fol. 20/1-2): «com determinado prazo»;
suscipiens in se periculum (fol. 48/2): «o que assume o risco»;
assecurator qui tenetur de quolibet periculo (fol. 48/2): «o segurador que assume a responsabilidade por qualquer risco».
Além da clareza de exposição, Pedro de Santarém impressiona igualmente pela minúcia e profundidade com que trata as várias matérias, nomeadamente a questão da pirataria, estabelecendo uma destrinça fundamentada entre ladrões e piratas. Não há pormenor que lhe escape, e vai ao ponto de discorrer se «um segurador deverá assumir a responsabilidade caso as mercadorias sejam danificadas por ratos ou pela traça» (an assecurator teneatur si merces deteriorentur a muribus vel tinea)!
Para encerrar este capítulo, não posso deixar de referir alguns enunciados mais moralistas de Pedro de Santarém, que os hodiernos seguradores poderão certamente ler com inegável proveito:
animus semper in dubiis bonus præsumitur (fol. 2/2): em situações dúbias, presume-se sempre a boa-fé»;
in contractibus magis mens quam verba contrahentium sunt inspicienda (fol. 48/2): «nos contratos, importa prestar mais atenção à intenção do que às palavras dos contraentes»;
nemo debet ex dolo tertii aliquid lucri consequi (fol. 48/2): «ninguém deve lucrar seja o que for com o dolo de um terceiro»;
in contractibus mercatorum magis equitas quam iuris rigor spectatur (fol. 49/2): «nos contratos comerciais, dá-se mais importância à equidade do que ao rigor jurídico».
Praemium suplanta pretium
Do que ficou exposto até ao momento deduzimos então que os tratadistas se serviram inicialmente do termo pretium até que, do século XVII em diante, o vocábulo praemium suplanta inapelavelmente o anterior. Qual a razão desta substituição? Estou em crer que é possível aduzir várias hipóteses que a justifiquem. Uma delas prende-se com a própria etimologia de praemium. É o argumento que esgrime, entre outros, Napoleon Joseph Verheyen (1807-1869), que viria a ser Diretor Geral do Serviço de Segurança do Estado da Bélgica (1852-1869), numa tese de doutoramento defendida com sucesso em 15 de julho de 1829 na Universidade de Gante, com o título De contractu assecurationis contra incendium («Sobre o contrato de seguro contra incêndios»). No primeiro capítulo deste trabalho (p. 7), o autor enumera as cinco condições que considera essenciais a um contrato de seguro. A quarta condição refere-se à existência de um acordo sobre «determinado montante» (summa certa) que o assegurado «pagou ou prometeu pagar» (solvit vel solvendam promittit) ao segurador, «a título de preço do seguro ou de caução» (tamquam pretium assecurationis vel cautionis). Segue-se então a indicação etimológica:
quod pretium appellatur præmium a primo, siquidem in antecessum numerari solet («preço esse cujo nome, præmium, vem de primus [«primeiro»], pois costuma ser pago de forma antecipada»).
Pouco mais adiante (p. 17), o autor refere novamente esta etimologia, desta vez nos seguintes termos:
Præmium appellatur a primo, quia primum solvi solebat illud quod assecuratus dat vel dare pollicetur («O nome præmium vem de primus [«primeiro»], porque em primeiro lugar era costume pagar-se o que o assegurado dá ou promete dar»).
A este argumento etimológico, em bom rigor, subjaz o facto de o vocábulo praemium incluir o prefixo prae- (que deu origem a pre- e pré- em português), o qual indica anterioridade, pelo que o mesmo seria o mais adequado para indicar um pagamento feito à cabeça, por antecipação (ante-, aliás, é um prefixo que indica a mesma ideia de pre-: basta lembrarmo-nos de antever e prever). Apesar de praemium não figurar nas ditas Etimologias de Isidoro de Sevilha, a verdade é que provém de prae- e da raiz de emo, ‑is, ‑ere, emi, emptum («tomar, receber») significando etimologicamente «o que se toma antes», com referência à parte do espólio tomada ao inimigo e posta de lado para, antes de mais, ser oferecida à divindade que propiciou a vitória ou ao general que a obteve (vd. Les mots latins, de F. Martin, Hachette, 1976, p. 67). Esta aceção, aliás, não era desconhecida dos poetas clássicos, como se denota nos seguintes dois passos, em que praemia (plural de praemium) é utilizado como sinónimo de praeda («presa») ou spolia («despojos»), respetivamente:
spectat sua praemia raptor (Ov., Met. 6, 519): «o predador olha para a sua presa».
Neste caso, Ovídio refere-se a uma águia que esvoaça sobre o ninho onde depositou uma lebre que capturara com as suas «garras recurvadas» (pedibus obuncis), salientando que, «para o cativo, não há fuga possível» (nula fuga est capto). A expressão spectat praemia foi imitada por Séneca, o Jovem (Herc., 157), desta vez a respeito de um pescador que, embora não tenha ainda capturado a presa, observa atentamente o peixe na água aguardando que este morda o isco...
multaque praeterea Laurentis praemia pugnae aggerat (Verg. Aen., XI, 78): «juntara ainda os vastos despojos da batalha com os laurentinos».
A verdade é que, vendo bem as coisas, este argumento etimológico não é nada lisonjeiro para o segurador, mas isso é outra história...
Seja como for, o argumento de Verheyen, nos termos em que é apresentado, acaba por ser disparatado, pois etimologicamente praemium nada tem a ver com primus! A única justificação plausível que consigo conceber para este deslize é o facto de o autor ter traduzido, de algum tratado de seguros redigido em francês, a etimologia de prime, que é o termo utilizado na língua de Molière para indicar o prémio de seguro. Na verdade, Verheyen baseou parte da sua tese de doutoramento nas doutrinas de tratadistas franceses, dos quais, alias, cita várias frases na língua original, sem tradução. Quanto à etimologia de prime, as fontes divergem:
a) De acordo com o Petit Larousse Illustré (1983, p. 808), prime proviria do latim praemium. Parece-me uma hipótese foneticamente inaceitável...
b) De acordo com três dicionários de renome disponíveis em linha (Le Littré, Larousse e TLFi), prime seria oriundo do inglês premium (que, na verdade, se pronuncia /ˈprimiəm/). Creio que esta etimologia é pouco plausível, quanto mais não seja por uma questão cronológica: segundo o referido TLFi, prime está atestado já em 1620 com a aceção de «prémio de seguro», enquanto premium, com a mesma aceção, de acordo com o Online Etymological Dictionary compilado por Douglas Harper com base em reputadas fontes, is 1660s, ou seja, não aparece abonado antes de 1660-69...
c) Segundo uma nota aposta ao já referido Le Littré, da autoria de M. Vigié, professor na Faculdade de Direito de Grenoble, a origem de prime radicaria na expressão latina prima pars («primeira parte»), referente a uma «dedução que, no início, os comerciantes armadores se comprometiam a fazer aos lucros da travessia, para constituírem o seguro e o respetivo prémio». Parece-me que esta hipótese é plausível e faz todo o sentido, até porque explica igualmente o termo prima, que se usa em castelhano para designar o prémio de seguro. Em catalão também se diz prima, vocábulo que poderá provir da forma homónima castelhana ou do francês prime, como sugere o Diccionari català-valencià-balear de A. M. Alcover e F. de B. Moll, e em romeno usa-se primă, cuja origem entroncará também no termo francês, de acordo com o DEX online, que transpune pe Internet dicționare de prestigiu ale limbii române («transpõe para a Internet dicionários de prestígio da língua romena»). Creio, porém, que não será descabido aventar, tanto para o termo catalão como para o romeno, uma procedência direta do latim. Refira‑se ainda que, em turco, o prémio de seguro é designado por prim, vocábulo que proviria do francês prime, segundo o dicionário em linha disponível no sítio do Türk Dil Kurumu («Instituto de Língua Turca»).
Uma segunda hipótese que poderá explicar a troca de pretium por praemium na nomenclatura latina utilizada na atividade seguradora tem a ver com o facto de estes dois vocábulos terem campos semânticos parcialmente sobrepostos em latim, pois pretium, além da aceção habitual de «valor», «preço», também quer dizer «prémio», «recompensa», como neste passo de Virgílio:
Et palmae, pretium victoribus (Aen., V, 11): «E folhas de palmeira, o prémio dos vencedores».
Ainda a este propósito, refira-se que, em francês, prix («preço»), que provém de pretium, também quer dizer «prémio»: por exemplo, Prémio Nobel diz-se prix Nobel. Além disso, os vocábulos ingleses price («preço») e prize («prémio») são formas divergentes que remontam à mesma fonte, o francês antigo pris.
Uma terceira hipótese que poderá explicar a proeminência de praemium tem a ver com a crescente especialização da atividade seguradora e com a inerente necessidade de empregar vocábulos precisos e inequívocos. O termo pretium começou a revelar-se demasiado vago. Já Pedro de Santarém, na obra referida, embora não fazendo ainda uso de praemium, sentiu a conveniência de destrinçar o prémio em si, como conceito fixo, do respetivo valor, obviamente variável consoante as condições do contrato. Como se servia invariavelmente de pretium (que grafava precium) para designar o prémio, escreveu então quantitas precii (fol. 20/1) para se referir ao «valor do prémio».
Na referida obra de Verheyen, que é posterior (1829), e na qual o termo praemium já é habitual para designar o prémio de seguro, o autor também sentiu a necessidade de contrapor o conceito de prémio ao de preço escrevendo (p. 18):
Cum præmium sit pretium periculi, præmii quantitas varia est («Como o prémio representa o preço do risco, o valor do prémio varia». Neste caso, Verheyen joga com três matizes importantes (praemium, pretium e quantitas), o que denota inegável refinamento da linguagem seguradora, que se ia tornando gradualmente mais técnica e precisa. Estoutro passo de Verheyn realça bem a importância de pretium não poder continuar a abarcar o conceito que cabia a praemium, como acontecia nos autores de séculos anteriores:
Parum refert utrum pretium rerum assecuratarum in politia constitutum sit nec ne (p. 27) «Pouco importa se o preço das coisas seguras figura na apólice ou não».
A utilização crescente das línguas nacionais nos seguros
Paralelamente, assistimos por esta altura a um fenómeno irreversível: a utilização crescente de línguas nacionais nos tratados que versam sobre a atividade seguradora (e não só!), em detrimento do velhinho latim. Já no final do século anterior, mais precisamente em 1786, viera a lume em Florença, em três tomos, aquele que é considerado o primeiro tratado verdadeiramente moderno sobre a atividade seguradora, da autoria de Ascanio Baldasseroni (1751-1824), jurista toscano especializado em direito comercial. Esta importante obra, Trattato delle assicurazioni marittime («Tratado dos seguros marítimos»), que conheceu em 1801‑04 uma segunda edição, corrigida e bastante aumentada, em cinco volumes, foi integralmente escrita em italiano, e não em latim. A crescente utilização de idiomas nacionais teve uma consequência importante: os escritores, cada vez mais lidos nessas línguas, embora não cessassem de redigir em latim, começaram a sentir a necessidade de glosar termos latinos novos ou menos frequentes. Por exemplo, Verheyen, na obra referida, recorre várias vezes a tal expediente servindo-se para o efeito do francês:
in apothecis (magazins): «nos armazéns (magazins)» (p. 16)
pars quæ assecurata non est, et quæ intecta (le découvert de l’assuré) vocatur: «a parte que não está segura e que se chama descoberta (le découvert de l’assuré)» (p.17)
damnum minus (sinistre mineur): «pequeno sinistro (sinistre mineur)» (p. 31)
Num dos casos, o autor, além de glosar o termo, até pede desculpa por recorrer ao mesmo! Eis a respetiva citação (p. 4):
In omnibus fere politiis (polices, sit venia verbo): «Em quase todas as apólices (polices, perdoe‑se‑me o termo)». Mais adiante (p. 22) refere que «se chama apólice ao instrumento no qual está contido o contrato» (Politia appellatur instrumentum quo continetur ille contractus) e numa nota de rodapé explica que o termo em questão (politia), sendo hispânico, foi introduzido pelos italianos e longobardos.
Neste sentido, acaba por não espantar a forma como o autor resolve concluir (p. 48) a sua tese de doutoramento afirmando que «seria desejável» (optandum fore) que «nas palestras académicas» (in prælectionibus academiarum), «e sobretudo na elaboração e defesa de uma tese» (et præsertim in conscribenda defendendaque dissertatione) «o latim fosse substituído por uma língua mais usual» (lingua magis usualis latinæ substituiretur). Apesar de tudo, a tese de Verheyen está redigida num latim fluente e até elegante, o que me leva a crer que as dificuldades sentidas pelo autor se referem primordialmente à nomenclatura. É natural que uma língua cada vez menos utilizada a nível escrito e, sobretudo, oral não conseguisse acompanhar os idiomas nacionais na sua galopante especialização terminológica. Johannes Siewertsz van Reesema, de Roterdão, numa tese de doutoramento defendida alguns anos mais tarde, a 10 de abril de 1840, na Universidade de Leiden, com o título De assecuratione salvae navigationis («Sobre o seguro como proteção da navegação»), não hesita mesmo em usar termos não assimilados, em itálico, como restorno e polizza («apólice» em italiano), submetendo-os ao habitual esquema das declinações latinas: studium polizzarum (p. 3), «o estudo das apólices»...
Por último, não posso deixar de referir, porque vem a talhe de foice, um excelente estudo, intitulado Início do seguro: uma questão controversa, da autoria de Ruy de Carvalho, publicado no aps notícias, boletim trimestral da APS (Associação Portuguesa de Seguradores), no número de abril, maio e junho de 2007 (p. 12-16), e disponível em linha. Embora este estudo não incida particularmente na questão terminológica (por exemplo, é omisso em relação ao vocábulo prémio), traça uma panorâmica séria e muito bem documentada da história dos seguros desde os primórdios, sem entrar no domínio do lendário, como infelizmente sucede com alguns artigos sobre esta matéria que povoam o ciberespaço...