«A história dos discursos presidenciais em Portugal é em boa parte a história da forma como cada Presidente eleito tentou definir o seu papel perante os governos. Talvez por isso lembramos sobretudo as palavras que representaram momentos de rotura. Será o destinatário destes discursos a história ou o presente?» Trabalho publicado no caderno P2 do jornal "Púbico", de 25/04/2009, que aqui se transcreve na íntegra in memoriam do autor.
A 25 de Abril de 2003, Jorge Sampaio subiu as escadas do hemiciclo de São Bento para falar aos deputados nas comemorações do aniversário da revolução de 1974. Tinha preparado uma longa reflexão sobre política orçamental e o recuo do Estado na economia, enquadrada do ponto de vista histórico e ideológico. Mas uma frase ficou desse discurso: foi quando o então Presidente disse «há vida para além do Orçamento», na presença do Governo Durão Barroso, cuja primeira prioridade era o combate ao défice orçamental. Havia vida na esfera política portuguesa: um soundbite presidencial tinha virado a agenda do avesso. E em menos de 30 caracteres o suficiente, em linguagem moderna, para enviar quase cinco twits.
O autor, Jorge Sampaio, relembra esse episódio, numa conversa por telefone com o P2. «O discurso em que disse que havia vida para além do orçamento foi um exemplo do peso da palavra do Presidente», disse. Sublinhando que «o Presidente tem que usar bem as poucas oportunidades que tem de falar», Sampaio não se revê na fórmula do soundbite: «Sou um clássico, prefiro o aprofundamento dos temas. O soundbite não é prestigiante.» A frase que surgira durante o período de preparação de um dos mais importantes discursos presidenciais do ano fazia o seu caminho. Escrita num tom raro não só nas intervenções de Jorge Sampaio como no dos outros presidentes eleitos, fizera o pleno do que se podia esperar de um discurso presidencial. Poderosa do ponto de vista retórico, desafiava a política do Governo de uma forma implícita e indirecta.
Os discursos dos presidentes eleitos em Portugal têm sido dominados por esta expectativa, desde que, nas comemorações do 25 de Abril em 1977, o general Ramalho Eanes criticou o Governo minoritário de Mário Soares.
O momento em que desafia o Governo é aquele em que a relevância política do Presidente e a sua noticiabilidade se tornam mais elevadas.
E quando Cavaco Silva fizer esta manhã [25 de Abril de 2009], em São Bento, o percurso que todos os presidentes eleitos repetem desde 1976, a expectativa estará em saber até que ponto e em que grau questionará a política do Governo de José Sócrates. «É o discurso que marca o primeiro mandato, a primeira fase, a fase da cooperação estratégica, que deixou de ter sentido, porque não produziu resultados. Se a segunda fase não tiver sucesso, não há reeleição. Se ele não disser nada de relevante, desaparece nas águas da crise», disse um dos vários observadores da Presidência da República que falaram ao P2 sob anonimato, numa conversa anterior ao recente discurso de Cavaco Silva perante os empresários cristãos e à entrevista de José Sócrates à RTP1.
Os próprios explicam-se
Em Portugal, a palavra do Presidente é sempre refém do equilíbrio de poderes em que o Presidente está inserido. Para iniciar uma conversa sobre discursos presidenciais, Jorge Sampaio começou logo por falar no equilíbrio de poderes. «O regime constitucional português é muito específico, define um sistema de pesos e contrapesos e de legitimidades simultâneas, Presidente, Assembleia da República e Governo têm legitimidades que decorrem do voto o executivo está no Governo, o que tem sido pacífico, com nuances interpretativas de até onde um Presidente pode ir, porque não tem legitimidade para governar. Essa distinção é basilar.» A palavra do Presidente serve, em primeira instância, para delimitar este equilíbrio.
Todas as fontes contactadas para este trabalho coincidem em destacar a importância da palavra no exercício de um cargo não executivo com uma importância simbólica superior à de todos os outros órgãos de soberania.
«O PR intervém para revelar o que está oculto no discurso político corrente. Usa holofotes novos, se não o fizer é apenas um protagonista no debate corrente, a sua intervenção não tem valor acrescido. O seu poder é mostrar», explica uma dessas fontes.
Num depoimento enviado por e-mail ao P2, o primeiro Presidente eleito da III República, Ramalho Eanes, defende que «a vida política, em geral, e a democrática em especial, mostra quão importante são os discursos presidenciais na vida política nacional. Importância que resulta do peso simbólico institucional do Presidente da República e, também, das suas competências». Mas é também relevante como «uma maneira de dialogar com a opinião pública», cuja importância Eanes sublinha citando Pessoa: «Só há uma cousa que faz sentir ao governante que não pode abusar: é a presença sensível, quase corpórea, de uma opinião pública directa, imediata, espontânea, coesiva, orgânica, que todos os povos sãos possuem em virtude do instinto social que os torna povos, e cuja pressão oculta os seus governantes sentem sem que essa opinião pública tenha sequer que falar (.). Por isso, (...) não há verdadeiro governo, ainda o mais autocrático, que se não apoie na opinião pública.» O actual Presidente, Cavaco Silva, dedicou o prefácio da II edição dos Roteiros ao poder da palavra pública definindo-a como a capacidade de influenciar «os comportamentos dos agentes políticos, económicos, sociais e culturais e as atitudes dos cidadãos em geral», escreveu. Cavaco define a «palavra pública» como «um dos mais importantes instrumentos de actuação do Presidente da República», ressalvando porém que existe um dever de reserva e nem todas as palavras podem ser públicas: «O interesse nacional aconselha a que nem sempre as suas opiniões sejam manifestadas publicamente», escreve o Presidente. No entanto, o Governo conhece esses pontos de vista «não havendo razão para ficar surpreendido quando sobre eles o Presidente se pronuncia».
Falar para o presente?
Nos Estados Unidos, um Presidente com funções executivas tenderá a sublinhar os valores simbólicos e a inspirar, e os seus discursos são seguidos como parte de uma tradição, como aconteceu com a tomada de posse do Presidente Barack Obama. «Os discursos são importantes porque são uma constante da nossa história política. (...) Não servem apenas para medirmos os homens políticos, mas para dizermos uns aos outros quem somos», escreveu um dia Peggy Noonan, uma das principais speechwriters de Ronald Reagan.
As diferenças entre as duas tradições formam um contraponto que torna mais nítidas algumas características da tradição presidencial portuguesa, finalmente muito mais institucional do que a americana (seria também absurdo um presidente português falar em Deus num discurso). Isto apesar dos esforços no sentido da proximidade com o cidadão que todos os presidentes portugueses de uma forma ou de outra tentaram.
«Nós somos o que somos. Um discurso americano feito em Portugal seria provavelmente encarado como um discurso ridículo. Em Portugal temos de fazer um discurso que se adapte às características da nossa cultura política, que é profundamente diferente, e o mesmo acontece na maior parte dos países europeus», diz ao P2 José Matos Correia, antigo chefe de gabinete e autor de discursos de Durão Barroso enquanto este foi líder do PSD e nos primeiros meses em que foi primeiro-ministro. «Os discursos na vida política americana são discursos para a história, os discursos em Portugal são discursos para o imediato. Os presidentes podem fugir a essa lógica, mas os primeiros-ministros têm de falar numa lógica mais imediata de soundbite, o que se está à espera é que quem discursa marque a agenda política e isso implica que temos de responder à procura», acrescenta.
A palavra presidencial começa antes de tudo por definir uma leitura dos poderes e o lugar que cada Presidente quer ocupar na galáxia política: Mário Soares falou de magistratura de influência, um termo que os outros presidentes adoptaram, Jorge Sampaio falava em magistratura de iniciativa e Cavaco Silva reformulou a cooperação institucional na expressão «cooperação estratégica» Pelo que definem e pelo que deixam de fora, estes conceitos definem um espaço. Se isso é o suficiente para podermos falar nos discursos como uma tradição e uma constante do sistema político, como referia Peggy Noonan, é questão a que se voltará lá mais para o fim desta história.
Como se fosse uma fondue
Os discursos são essenciais, mas como são construídos? Se forem à procura de gabinetes de speechwriting à americana, não os vão encontrar. Não existem autores de discursos assumidos ou pessoas que oficialmente tenham apenas essa função. Os presidentes assumem-se como autores. Mário Soares, em particular, não aceita ter alguma vez lido um texto que não tenha escrito. Se a realidade portuguesa é muito diferente da «fábrica de discursos» que é a presidência americana, a definição de Peggy Noonan sobre quem escreve e quem não escreve discursos presidenciais pode ter alguma pertinência para o nosso problema: «Imaginem uma mesa onde se está a comer uma fondue.
Agora imaginem que toda a gente, mas toda a gente, tem um garfo e está mexer no tacho.» No fim do dia, é um trabalho colectivo, onde várias pessoas intervêm e o Presidente tem sempre a palavra final. A co-autoria é um papel que cabe a assessores e conselheiros políticos, eventualmente a assessores de áreas específicas.
«Mário Soares nunca leu um discurso que ele próprio não pudesse ter escrito», diz um dos observadores próximos do antigo Presidente. As listas de agradecimentos dos seus volumes de discursos enumeram as pessoas que contribuíram para os textos e permitem abrir o véu sobre quem interveio. «O discurso é sempre do Presidente», diz uma fonte oficial da Presidência da República. «Pede pesquisa e apoios em aspectos específicos, mas é ele que avalia o que quer dizer e os objectivos que quer atingir», adianta a mesma fonte.
A dimensão colectiva da preparação de um discurso presidencial, um trabalho que para os grandes discursos pode requerer entre quinze dias a um mês, ou mais do que isso no caso dos discursos do 25 de Abril ou de Ano Novo, é no entanto consensualmente aceite. «Muitas vezes, o tempo em que o discurso vai ser lido já não é o tempo em que o discurso foi pensado», diz uma fonte oficial da Presidência. «Cada discurso implica um tempo de ponderação da ideia. É preciso verificar se está bem sustentada, se tem bases sólidas.» Falando sobre preparação de discursos, Jorge Sampaio diz que era variável. «Depende. Se se tratava de discursos temáticos, ou destinados às jornadas, os assessores do ramo programavam as coisas e eu punha as minhas ideias. Quanto aos discursos de fundo, havia reuniões para discutir ideias e depois fazia uma síntese.» No caso de Mário Soares, o «trabalho de equipa» assumia uma forma singular: o Presidente escrevia o texto do discurso e lia-o em voz alta perante os seus colaboradores mais próximos. «A partir de certa altura ele pedia um contributo a cada um de nós, fazia uma síntese e depois lia o resultado final e registava as críticas; sempre soube trabalhar bem com as pessoas, além de saber falar, também sabe ouvir», diz uma das fontes ouvidas pelo P2.
As grandes datas
Os discursos do 25 de Abril e de Ano Novo são referidos por todos os antigos e actuais colaboradores de todos os presidentes eleitos ouvidos para este trabalho como os mais importantes do calendário «litúrgico» de intervenções anuais. «Há dois discursos anuais importantes que balizam a acção do Presidente o discurso de Ano Novo, mais conjuntural, e o discurso do 25 de Abril, mais histórico e prospectivo», diz um desses antigos colaboradores. «O 10 de Junho é politicamente mais fraco e está centrado na questão das comunidades e na região onde é comemorado. O 5 de Outubro tem uma função de ocupação da memória da I República, Eanes não o valorizou, Soares valorizou-o em função das suas origens políticas, Sampaio fê-lo menos. Cavaco valoriza-o como forma de competir com os valores republicanos e socialistas da I República, como a educação, e procura mostrar que esses ideais não foram cumpridos», sustenta.
Jorge Sampaio fala no 25 de Abril, no 10 de Junho e no 5 de Outubro como as «datas soberanas» às quais o Presidente reserva o que considera serem as «intervenções clássicas».
«Tentei introduzir uma outra, uma mensagem presidencial no início de cada legislatura, o que só aconteceu uma vez e que os partidos não aceitaram.» Para além destes discursos «clássicos», Sampaio privilegiou outro tipo de comunicação como as mensagens ao Parlamento, contactos com os jornalistas «às vezes levava a resposta engatilhada e acertava na mouche, outras vezes a pergunta não era a que estávamos à espera», os contactos mantidos na discrição do palácio presidencial «podia mandar vir qualquer pessoa a Belém e eles vinham», mas as mais importantes eram as jornadas: «São muito importantes do ponto de vista da coesão como tinham sido as presidências abertas, são de uma enorme importância do ponto de vista da proximidade com o cidadão, as pessoas distinguem muito bem entre o PR e o Governo, compreendem que é um árbitro.» As visitas às autarquias de Ramalho Eanes foram um primeiro exemplo dessa procura de proximidade. Mas é com as presidências abertas (a expressão foi cunhada pelo próprio Mário Soares) que se tornam num conceito político com vida própria, que se metamorfoseou nas jornadas de Jorge Sampaio e, actualmente, nos roteiros para a inclusão de Cavaco Silva.
Foram sempre estratégias que permitiram aos presidentes não ficarem prisioneiros no Palácio de Belém; e que nos tempos da maioria absoluta do PSD se revelaram instrumentos decisivos para o Presidente contornar o cerco de um Governo tão forte nesse tempo que fez com que Adriano Moreira lançasse então a teoria da «presidencialização do primeiro-ministro».
Perto da revolução
As diferenças de personalidade dos presidentes reflectem-se em estilos diferentes de construir discursos. Mas também os tempos históricos moldaram as diferenças entre os vários presidentes eleitos. Essa marca sente-se particularmente nos mandatos do general Ramalho Eanes em particular o primeiro, marcados por uma forte conflitualidade política, num período em que presidencialismo e parlamentarismo se confrontaram nos primeiros anos do regime, que conduziriam aos governos de iniciativa presidencial, antes das eleições que dariam a maioria absoluta à AD de Francisco Sá Carneiro.
No depoimento que prestou ao P2, Eanes coloca em perspectiva alguns factores que condicionaram esse tempo, como «a situação de divisão, antagonismo, frustração e violência revolucionária e contrarevolucionária, e sobretudo, como disse Marañon, pela 'gesticulação' revolucionária e contra-revolucionária, que assolaram toda a comunidade nacional». «O que terá impedido que a sociedade civil se debruçasse sobre si depois da queda do império, depois do regresso ao 'chão nacional europeu', que economicamente nunca nos bastara, por si só.» Mas também «à debilidade dos partidos e à necessidade, democraticamente imperativa, de lhes conceder tempo para se consolidarem» e «à dificuldade de reinstitucionalizar democraticamente as Forças Armadas, elas também divididas pela invasão ideológico-partidária, de as devolver, agora em democracia, à sua ideologia formal». Esta é parte da visão retrospectiva de Eanes sobre um tempo em que se dirigia aos deputados e ao governo com a memória da revolução ainda particularmente presente, como aconteceu em 1977, no quarto aniversário do 25 de Abril: «O desencanto que se apodera já de muitos é fruto de três anos de hesitações e de erros: que é feito da fraternidade que encheu as ruas e os campos deste país? Que é feito das torrentes de alegria com que nos lançámos na construção dum país diferente, duma pátria renovada?»
Escrever com intuição
Mário Soares, uma personalidade intuitiva e sintética, consegue escrever de jacto, à primeira, o essencial de um texto que depois será revisto e retrabalhado.
Escrevia sempre os seus discursos quando era primeiro-ministro e só durante a primeira campanha para a presidência, em 1985/86, sentiu necessidade de mudar de hábitos. Foi o que aconteceu com os tempos de antena dessa campanha, escritos por António-Pedro Vasconcelos, Vasco Pulido Valente ou Alfredo Barroso, entre outros. Isso aconteceu numa altura em que estava fragilizado pelo desgaste dos anos de governo do Bloco Central e num arranque de campanha em que à partida tudo parecia estar contra a sua candidatura. Na longa entrevista que concedeu a Maria João Avillez, nunca admite que esses textos não fossem seus. Mas conta-se que um dia estava a ler um texto de António-Pedro Vasconcelos que começava com a frase «Tenho 61 anos».
O candidato decidiu mudá-la para «tenho 60 anos», perante o protesto do realizador. Que finalmente conseguiu convencer o candidato, lembrando-lhe que ele tinha fama de ser pouco rigoroso com os números e com os dossiers e que o melhor era dizer a idade certa. Soares concordou.
Mas os dossiers nunca foram o seu prato favorito. Antes de partir para a presidência aberta nos Açores, uma das primeiras, logo em 1986, fechou-se em Nafarros a ler Raul Brandão ou Vitorino Nemésio, chamou a Belém personalidades como Natália Correia ou António Valdemar.
Quanto a dossiers, o mínimo possível. Achava-os repetitivos e mal escritos. O político que no prefácio das Incursões Literárias dizia de si próprio que tinha «uma visão literária» da vida trabalhou sempre os detalhes simbólicos das suas mensagens.
«Quando tomou posse para o primeiro mandato, depôs uma coroa de flores na estátua de Luís de Camões. No segundo, escolheu Antero de Quental», lembra um antigo colaborador.
O primeiro sublinhava o tom de um mandato que, nas palavras de Soares no discurso de posse, visava configurar a primeira presidência civil em décadas e o desejo de unificar o país que sairia dividido da campanha que o elegeu. «Unir os portugueses, servir Portugal» era aliás a linha hoje diríamos soundbite que fechava o primeiro discurso de posse de Soares.
Outro facto que mostra como os detalhes podem ser reveladores no discurso do Presidente está no retrato oficial de Mário Soares que Júlio Pomar pintou. Sendo um quadro de rotura com os retratos oficiais anteriores, informal e cheio de cor, mostrando um Presidente mundano por oposição à pose hierática convencional, tem um link à tradição presidencial: Soares está sentado na cadeira que fora de Teófilo Braga e António José Almeida. E a I República, cujo fracasso acompanha toda a reflexão do antigo Presidente sobre a revolução de 1974, é também uma das fontes de inspiração do ponto de vista estilístico dos seus discursos. «Há uma tradição de retórica presidencial que vem da I República em que Soares se insere e que é diferente da tradição oitocentista», diz um dos seus antigos colaboradores, para quem o primeiro dos presidentes civis da III República «inovou, à escala portuguesa, em matéria de discurso político, introduzindo o elemento cultural no discurso presidencial, que os primeiros-ministros e os Presidentes não faziam de todo».
Mais analítico, Sampaio pondera contributos e ideias até chegar à versão final. É sobretudo «a matriz especulativa do jurista» que predomina, os discursos devem enunciar todas as perspectivas de cada tema, nas palavras de um antigo colaborador da Presidência.
Sampaio considera o lado doutrinário como um aspecto decisivo do seu legado, que os discursos preservam. «Julgo ter deixado um contributo doutrinário importante em muitas áreas», diz Sampaio.
Como marcas políticas dos seus discursos, vale a pena sublinhar a diferença entre os discursos da tomada de posse de cada um dos seus dois mandatos. No primeiro, destacam-se temas construtivos como o consenso, a estabilidade, a exigência democrática ou mesmo um sentimental «amor a Portugal». No segundo, são os temas da descrença dos cidadãos no Estado e do divórcio com a política a dominar um discurso mais amargo, sinal do novo clima com que Portugal entrava no milénio. Há reminiscências «americanas» num texto que pede uma «nova atitude cívica» (a fazer lembrar Kennedy) ou quando refere que o Estado se torna «parte do problema» (num contexto ideológico diferente, a fazer lembrar o primeiro discurso inaugural de Ronald Reagan). Mas o lado negro sobreviveu até ao fim num dos últimos grandes discursos, o do 5 de Outubro de 2005, a tónica é a corrupção e... o enriquecimento ilícito.
Um discurso particularmente relevante no historial de Jorge Sampaio é o dedicado a Amália Rodrigues, no dia em que o corpo da fadista foi trasladado para o Panteão um ponto em que a escrita presidencial deixa de lado o fato institucional e insere-se livremente num momento de celebração colectiva, que as palavras pronunciadas entre as paredes dos palácios raramente alcançam.
Com Cavaco Silva, tudo é diferente. A longa explicação sobre a crise económica que abre o prefácio dos Roteiros, editada este ano, está nos antípodas dos seus antecessores. Ao contrário de Soares, Cavaco gosta de dossiers. «É um leitor ávido de dossiers, está sempre muito bem informado em questões económicas, isso dá-lhe um bom sentido de antecipação», diz uma fonte da Presidência. Do ponto de vista do estilo, é o professor de Economia que se sobrepõe: «Sempre teve a percepção de que precisa de falar uma linguagem muito clara, sem jargão e sem langue de bois, o que é muito importante para ele, que vem da economia. Tem um lado professoral, precisa de explicar.»
Mediatizações
Mas o que é também diferente é o peso da Internet. Sampaio foi o primeiro chefe de Estado a estar online, mas o site de Cavaco acompanhou as tendências chave da Web actual: imagem e interactividade. «Os jornais já não publicam discursos, publicam interpretações. O site permite-nos apresentar as intervenções na íntegra e medir o seu impacto.
O discurso aos empresários cristãos teve mais de mil visitas e colocámos o link para o discurso no twitter». A intervenção sobre o divórcio foi até agora a mais lida do actual Presidente, que pode ter um olhar sobre o impacto das suas mensagens muito mais preciso do que os seus antecessores.
A mediatização da mensagem presidencial é uma parte importante do seu contexto. Na introdução aos Roteiros II, em que fala da palavra pública, Cavaco Silva defende que o Presidente «deve ser ponderado no uso da palavra pública e falar de modo a ser escutado». Mas logo a seguir refere a mediatização como um obstáculo a essa intenção: «Perante a pressão mediática que caracteriza os nossos tempos, encontrar a palavra certa, na ocasião apropriada, nem sempre é um exercício fácil.» Jorge Sampaio está a referir-se a esse problema quando fala em soundbites ou em respostas «engatilhadas» para a multidão de repórteres que em qualquer sítio público persegue qualquer líder político. Uma alternativa a este espectáculo, que acaba por ser um símbolo preciso de incomunicação política entre as duas partes, poderia ser a existência de porta-vozes ou conferências de imprensa regulares de titulares de cargos públicos.
«O Presidente da República deveria dar conferências de imprensa e ter um porta-voz. Um porta-voz é uma coisa admirável e mesmo os governos deviam ter um», defende o antigo Presidente.
O exemplo americano (uma vez mais) mostra como a intervenção dos porta-vozes ou as conferências de imprensa de um Presidente ou de outro político em funções podem ser espaços mais adequados para colocar perguntas e dar respostas do que o corre-corre permanente.
«Estamos a perder os ritos na política e isso significa que a estamos a banalizar», diz José Matos Correia. «Sempre defendi, sem nenhum sucesso, que o primeiro-ministro devia ter uma conferência de imprensa semanal, em Portugal isso nunca foi feito, eu acho um erro. Esse tipo de intervenção também podia ser feito por um porta-voz, que no fundo seria uma espécie de membro do governo, mas em Portugal isso não existe», afirma.
Preso nas malhas dos equilíbrios institucionais que deve preservar sobre o qual detém o poder nuclear da dissolução do parlamento e na complexidade das expectativas geradas pela mediatização, conseguem os discursos presidenciais em Portugal constituir algo de parecido com uma tradição, uma constante como a que referia Peggy Noonan? Se essa tradição, tal como acontece nos Estados Unidos, fosse feita de grandes soundbites, a tónica comum em Portugal seria a do desafio presidencial a outros poderes.
É o significado da «ditadura da maioria» de Mário Soares, em 1984, do «há vida para além do Orçamento» de Sampaio ou da mensagem de Ano Novo de 2007, em que Cavaco Silva questionou os ordenados dos gestores. As frases marcantes mostram como são os momentos de rotura que ficam na memória. Mas existem outros factores constantes. Para Jorge Sampaio, isso decorre de um grande consenso em torno das interpretações dos poderes presidenciais, que permite falar de «um corpo comum aos quatro presidentes eleitos».
Mas a maior constante das palavras presidenciais talvez seja o silêncio e as maiores marcas que distinguiram cada um dos presidentes tenham sido a forma e o contexto em que o romperam.
A verdadeira pergunta a que cada soundbite presidencial tem de responder é se há vida para além do silêncio.