« (...) Se há palavras que se atardam em longas espera nas antecâmaras dos dicionários, chegando algumas a pairar durante séculos num limbo de indecisão, outras batem impacientemente à porta e até nos admiramos ao comprovar que ainda não estão inscritas. (....)»
É bom e tranquilizador sabermos que, enquanto decorrem os nossos banais quotidianos, repletos de pequenas complicações, alguém vela e pensa e lê e discorre, terraplena e alarga as ilhotas do conhecimento. Os escritores, repassados de perplexidades, em relação agonística com uma língua que, se por um lado os alimenta, por outro, não raro os derrota, exactamente como faz aos pescadores o mar, só podem solidarizar-se com quem empreende devassar os mistérios da sua poderosa, combativa e não raro ardilosa contendora.
Eu aqui, nesta excelsa reunião, com estas divagações, faço um pouco o papel do prático. Não sei se se lembram do prático. O prático era um pescador, já experimentado e curtido de percalços que, a bordo dos navios, ajudava à pilotagem ou à navegação. Lá estava, de cara tisnada e mãos calejadas, para dar opiniões quando os oficiais e mestres o chamavam. Nunca tinha lido Plínio o Velho, nem tampouco Ptolemeu. Na verdade, nem sequer sabia ler. Mas dava indicações preciosas e evitava alguns desastres com a sua linguagem simples, vibrante de implicações, avisando que o mar estava grosso, as ondas iam estrapalhadas, davam água pela barba, ou recomendando cautelas com os mares verdes e as luas chorosas.
Responsabilidade não lhe faltava, mas não sei se, a bordo, o prático tinha algum privilégio. Pelo menos, era alimentado, coisa que em tempos de pavorosa miséria merece vénia. Mas eu, e aqui me distingo do prático, não tenho com estes meus arrazoados a responsabilidade por vidas ou mortes e cabe-me muitas vezes o privilégio de auditórios distintos me ouvirem falar sobre aquilo de que pouco sei.
De maneira que me vejo sempre obrigado a iniciar as minhas intervenções com uma captação de benevolência, ou como se dizia, no meu latim simplificado de jurista (pré-quiquerístico) captatio benevolentiae.
E de tal forma venho sendo obrigado a esta prévia confissão de humildade e de ignorância, que, com a idade que já levo, quase a tenho transformado de exórdio consabido, em profuso género literário.
Permitam-me que comece por Abel Botelho e pelo seu inipict de O Barão de Lavos, obra relativamente conhecida por motivos extraliterários que não são, francamente, os que me movem. Abel Botelho é um interessante escritor do século XIX, a que regresso de vez em quando, neste jeito egoísta de surpreender um belo esforço de prosa, aprender com a construção de uma cena, ou, ao contrário, renovar um memento sobre os excessos com que certos boleios nos podem perder. Não é tempo de conversarmos sobre o autor, que talvez fique para outra ocasião, mas sobre o vocábulo tremilhar que eu surpreendi logo nas primeiras linhas e que não encontrei em vários e venerandos dicionários, por mais que puxasse por eles. Tratava-se de uma cena nocturna, cheia de expressividade e de rasgos descritivos, movimento e repouso, claros e escuros, sombras e espelhamentos. Após um excelente diálogo, muito alusivo, surge o vocábulo , que é também um neologismo de Abel Botelho. Os dicionários abonam tremeluzir, tremelear, tremelicar, mas omitem as formas encontradas por Abel Botelho, que foi quem as cunhou, para usar uma tradução do vocábulo inglês to coin, própria destas ocasiões.
Uma gralha com forte vocação a neologismo
Um escritor a criar um neologismo? Nada de especial. É o que menos falta. Outro escritor a ler profissionalmente um confrade? Este género de devassa também faz parte dos ossos do mester. Anota-se, e mesmo que se esqueça à superfície, ficará em quaisquer águas profundas ou intermédias essa memória a… tremeluzir. Convinha que soubessem, de passagem, que, muitas vezes, as razões da preferência dos escritores por outros não respondem à questão «gosto ou não gosto», mas à de saber «o que posso eu fazer com aquilo»…
Ora acontece que numa das minhas visitas a O Barão de Lavos, por sinal numa versão informática, o que eu encontrei foi ainda melhor que tremilhar: foi tremelilhar. Andei com este tremelilhar fisgado durante alguns anos, e só não o utilizei porque não calhou.
Mas numa dessas derivas, em que flanamos, por aqui e por ali, meio distraídos, meio despertos, como o caçador nas paisagens, acabei por descobrir, não sem desapontamento, que tremelilhar era, afinal, uma gralha, embora fosse uma gralha com forte vocação para neologismo.
Que os escritores no uso da licentia vatum podem acrescentar a língua já é, desde há muito, pacífico. Mas que as gralhas possam trazer a sua achega deve ser mais problemático, embora me ocorra a suspeita de que somos devedores de milhares de copistas ensonados e tipógrafos cansados ou criativos.
Eu gosto do tremelilhar. Dá uma ideia de pequenez e de vivacidade que associo à sílaba li, ao dígrafo lh, à repetição do consoante líquida l, exprimindo a fragilidade tímida e fugaz duma minúscula cintilação. Parece bem melhor que o dicionarizado fremilúcido (Caldas Aulete) e mais feliz que tremebrilhar por não exibir, tão patente, o artificialismo da elaboração. Dificilmente se suportam, na literatura, os andaimes à mostra ou as marcas dos rebites.
Sei que é muito difícil partilhar esta apreciação idiossincrática das palavras que leva a escolher umas e a ter aversão por outras. Mas ela ao menos serve para relembrar as tormentas do ofício do escritor, muitas vezes comandado de uma espécie de sala de operações (eu ia, descuidadamente, dizer régie) a que, nem, às vezes, o próprio autor tem acesso.
O oculto posto de comando está instalado nas margens da língua, no terreno do inefável, em regiões já inacessíveis à verbalização e daí move a mão do escritor. O mesmo é dizer: o processo de escolha das palavras nem sempre é redutível à palavra.
Em todo o caso, o tremelilhar que o acaso fez nascer e que eu cobicei gulosamente não parece estar fora daquele âmbito de contornos porosos e difusos que se designa habitualmente por índole da língua. Aqui trabalharam o escritor — e o tipógrafo — com os seus achados mais ou menos felizes.. Mas, no correr dos séculos, trabalhou sobretudo o povo, que tem sabido incorporar, de uma maneira expedita e sem atrito, os termos que fazem falta. Estou a pensar no espantoso chulipa do inglês sleeper no despojado macadame, e em vocábulos que não me consta estarem dicionarizados como o magnífico catrapila com que os alentejanos da minha juventude aportuguesavam um tractor de lagartas baptizado, rebarbativamente, Catterpillar no inglês de origem.
E mesmo quando o equívoco é manifesto, como no caso da anormalia, presente no título desta minha digressão, ele pode comportar um potencial de lusitanidade e uma rede de sentidos que deixa à distância o grego embaciado de anomalia. Anormalia — qualidade do que é anormal, anormalia, uma aquisição popular, interpretação forte do insípido vocábulo grego. Ouvi a palavra várias vezes: a um pescador que se queixava das suas máquinas, a um utente que protestava contra um sistema, a um passageiro indignado…
Eu era capaz de considerar que talvez já fosse altura de lançar a palavra nos dicionários, como mais um sinal de uma língua viva que se vai refazendo e pondo à prova o seu génio, numa espécie de código conversor inato que toma conta e organiza as nossas falas e que acerta, mesmo quando erra.
Se há palavras que se atardam em longas espera nas antecâmaras dos dicionários, chegando algumas a pairar durante séculos num limbo de indecisão, outras batem impacientemente à porta e até nos admiramos ao comprovar que ainda não estão inscritas. Estou a referir-me, por exemplo, a blogue, com g-u-e, que me parece perfeitamente consentâneo com o direito de cidadania. Já não seria tão complacente em relação à feia listagem ou ao irritante digitalizar, que parecem ter-se instalado, em furtiva manobra de ocupação, por uma longa temporada. E já não falo no abominável implementar que se usa tanto por aí.
O imposto (e exposto)
pela ignorância ou pela incultura
Chamei a esta divagação Checando anormalias no aparato, e resolvi começar pela palavra que me pareceu simpática e conforme quer à etimologia, mesmo fantasista, quer à fonética do português, acudindo a uma necessidade expressiva — a anormalia.
Mas o checar e o aparato não podem ter a mesma benevolência nem ser encarados com o mesmo desprendimento. Eu sei que soará deslocado, em presença de linguistas tão distintos que reclamam, com razão e com brio, uma aproximação científica destas matérias, que se proponha uma distinção tão aberta entre um licet e um non licet, melhor, entre o que se tolera e o que se condena.
Dir-se-ia que não compete à ciência lidar com um "dever ser" porventura mais apropriado aos refegos morais da ética. A atitude científica limitar-se-ia a comprovar, à pura maneira positivista, «o que é», deixando o domínio do "condendo" para os moralistas, os políticos, os filósofos, enxotando-o, até, para essas utopias nebulosas em que palram os escritores.
Mas, em não se querendo estatuir e legislar, sempre se poderá, de uma forma muito estrutural e aristotélica (parece um paradoxo, mas não é), distinguir o que faz parte dum conjunto daquilo que não lhe pertence. O que o constitui, do que lhe quebra a unidade. O que é pedido pelas naturais vicissitudes da confrontação entre a língua e a circunstância histórica, daquilo que é imposto (e exposto) pela ignorância ou pela incultura.
A palavra cheque, designando uma ordem de pagamento, corresponde ao preenchimento de uma lacuna que as realidades do século XIX exigiram, com uma consagração legal relativamente rápida.
Mas um destes dias, numa prosa editorial de certo jornal de referência de Lisboa, com aquele sobressalto alarmado de quem descobre um parasita no linho, encontrei o vocábulo checar. Depois disso, passei a reparar nele, em ostensivas recorrências, na Internet, como se estivesse a fazer-me negaças, de página para página. Uma imprudente curiosidade levou-me a um sítio chamado www.conjuga-me. net, onde com toda a naturalidade se ensina a conjugar o verbo checar, gerúndio checando, particípio passado checado, mais-que-perfeito vós checáreis…
Neste ponto, torna-se inevitável o conceito que eu deixo à consideração dos linguistas: o da falsificação da língua, favorecendo o tráfico dum pseudoportuguês. O verbo checar, num sítio em que pretensamente se divulga o idioma, não é um erro, não é um lapso, não é uma distracção, não é uma comodidade, nem sequer é um expediente comercial dum mercador chinês aflito: é uma fraude. Checar nunca existiu na língua portuguesa, não faz falta (como outrora cheque fez falta) e merece rejeição, de cambulho com outro vocabulário parasita como mídia, deletar, câmera (escrita com "e") que se prevalece das deficiências de imunidade dos utentes. Notem, não se trata de ser português de Portugal ou do Brasil. É um embuste e uma falsificação em qualquer das variantes da língua.
Finalmente, o aparato, usado por uma bióloga que eu ouvi explicar umas coisas sábias sobre uns répteis agressivos, crocodilos, ou jacarés, não sei bem, nem me interessa muito saber. O bicho tinha um aparato mastigatório que fazia e acontecia. E a senhora repetiu aparato, com convicção, por várias vezes. Com tal convicção, que me fez andar de dicionário em dicionário à procura de um suporte mínimo que justificasse o à-vontade.
Lá fui ter ao latim parare, preparar, precaver, lá encontrei, em Caldas Aulete, uma citação do padre António Vieira, Tantos gastos, tantos aparatos de guerra perdidos… Num volumoso Dicionário da Língua Portuguesa, coordenado por José Pedro Machado, vinha referida a "disposição de órgãos para se obter um fim determinado", significado caído manifestamente em desuso. Somente nestes dois casos a minha persistência encontrou para aparato uma pálida acepção de aparelho.
Não havia que fugir à brutal evidência. Aquela simpática bióloga — e, nisto, não está seguramente sozinha — tinha importado o vocábulo castelhano que se traduz em português por aparelho. Era o aparelho mastigatório que ela deveria ter dito. Porque é que não o fez? Porque é que foi respigar aparato ao castelhano?
Num certo filme de Dino Risi, um juiz de instrução (Ugo Tognazzi) interroga um empresário pedante (o grande Vittorio Gassman). A data altura, o empresário diz «il fruitore dello prodotto finito». O que quer isso dizer?, pergunta o juiz. «O consumidor». «Então porque não diz consumidor?» Responde Gassman: «Porque refuto a chateza (a palavra é "piattoma") da terminologia indiferenciada.»
Aí está uma razão que talvez ajude a perceber a intrusão deste insólito aparato: ostentação vocabular, no caso delimitando um campo de autoridade. Não é um fenómeno novo: a luta pelo estatuto afirma-se fortemente na linguagem, em termos que dariam muito pano para mangas.
Encontraríamos quer a atitude complacente e vagamente desdenhosa do comentador académico que julga pairar acima das coisas humanas, e tudo desdramatiza, numa reencarnação infinda do doutor Pangloss, quer o frenesi agitado e boateiro próprio do chamado infotainement, indissociável de certo tipo de jornalismo, que vive à custa das tensões, dos exageros e do alarme social. Os dramatizadores e os desdramatizadores têm no plano social os mesmos papéis que, nos interrogatórios das polícias, o agente bom e o agente mau, com a alternância entre a tranquilização e o susto.
Não digo que, aristotelicamente, a virtude esteja no meio. Talvez a virtude seja um traço coleante que vai de extremo a extremo, numa espessura muito complexa, e que precisa de ser avaliada todos os dias, com o olhar com que observamos os barómetros. Mas eu hesitaria muito em tomar uma atitude desprendida, confiada em que a própria língua encontre sempre soluções. Encontra? Claro que sim: basta consultarmos os documentos notariais anteriores a D. Dinis para vermos como o latim conseguiu sobreviver com simplificações gramaticais, com importações lexicais e com a adopção de grafias fantasistas. Só que… já não era latim.
Consciência da língua, índole da língua,
política da língua, falsificação da língua…
E o português — pergunto-me — continuará a ser português, depois de todo este enriquecimento vocabular em que flauteiam os checares, a mídia, e os aparatos? Depois de os nossos jovens não serem capazes de usar o pronome lhe? Depois de extinta a noção, ou a mera suspeita da mesóclise? Depois de o vocabulário ter sido reduzido a um mínimo elementar? Depois do colapso de uma cultura rural com os seus provérbios, os seus apetrechos, as suas funções, sem que esses saberes tenham sido substituídos por outros? Talvez daqui a uns anos ainda seja português, um pouco como a célebre faca de Santo Humberto ou o machado de Jorge Washington, que depois de levarem vários cabos e várias lâminas continuavam a ser a mesma faca e o mesmo machado.
Se alguém pensar que o português corre riscos, e que merece a pena preservá-lo como língua de cultura, então, salvo melhor aviso, terá de considerar o seguinte:
• Tem-se procedido à ablação da memória da língua e do conhecimento das suas espessuras e fronteiras. A eliminação das referências à sua etimologia e à sua história tem sido devastadora. E, se a supressão do latim foi um erro, o alheamento da literatura e da história da literatura no ensino tem constituído um verdadeiro crime.
• As pessoas que desprevenidamente importam os aparatos e as checagens fazem-no também por não encontrarem, à sua volta, um ambiente em que exista uma censura sociocultural destas fraquezas. Todos conhecemos as silabadas que os nossos médicos dão, tão repetidas, algumas, que chegaram a impor-se no falar corrente: estou a pensar em biópsia, por exemplo, em vez de biopsia. Mas, há uns anos, de uma forma geral, os médicos e outros profissionais qualificados exprimiam-se com uma linguagem relativamente cuidada. Deixou de ser assim. Desapareceu a pressão dos seus pares que funcionava, não raro, através de um estigma de ridículo.
• A língua portuguesa expande-se todos os dias, e nascem inúmeros futuros falantes, por todo o planeta. Não tardará, dizem, e seremos a quarta língua do mundo. Em Portugal já há problemas de identidade linguística que bastem. Mas, ainda que não houvesse, os recursos do país seriam manifestamente insuficientes para contrabalançar as forças centrípetas. Sempre louváveis, os esforços de alguns intelectuais — às vezes desacreditados por uma ânsia fundamentalista de purismo — não têm qualquer impacte prático, designadamente nos meios audiovisuais, poderosos difusores da iliteracia.
• Apenas uma apropriação do problema por parte dos países da CPLP, com uma adequada estratégia de defesa do português, poderia criar uma consciência da língua através de uma política da língua. Consciência da língua, muito no sentido em que, em tempos, se valorizava a "consciência política". E que eu não posso desligar de uma noção de pertença à cidade, de cidadania. Neste caso, uma cidadania que extravasa as fronteiras nacionais e que representa uma identidade mais forte que o recorte das fronteiras dos países falantes.
Política da língua supõe que se definam objectivos, estabeleçam planos, mobilizem meios, se conjuguem esforços. Dispensará automóveis caros, viagens, jantaradas, compras de luxo e palavreado. Uma política bem-sucedida tem sido possível em Portugal, com razoáveis efeitos e sem alardes: não querendo propor engenharias culturais, lembro a Rede de Leitura Pública e o Plano Nacional de Leitura, autênticos casos de sucesso no mar das frustrações nacionais.
Mas também se pode pensar que estas questões não têm importância nenhuma e que o seu tratamento pode ser enclausurado dentro de um respeitável, mas indefeso, discurso académico. Que consciência da língua, índole da língua, política da língua, falsificação da língua são noções próprias de intelectuais nefelibatas. Que o que importa são os saberes técnicos, mesmo que isso implique o quotidiano contrabando do checar e dos aparatos.
Se estas concepções vingarem, como têm vingado, resta-me a consolação de não ter sido cúmplice da desagregação do português como língua de cultura. Podia ter feito melhor. Mas também podia ter feito pior. Deixei, pelo menos, estas palavras em tão boa companhia.
Cf. A boa escrita: três livros de Mário de Carvalho
Comunicação do escritor português Mário de Carvalho num encontro organizado pelo Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), em 2008, publicado no Jornal de Letras n.º 1023, de 21 de Abril de 2010.