DÚVIDAS

Sobre o auxiliar modal dever

Gostaria de saber se a construção «A deveria permitir B» tem (ou pelo menos pode ter) o significado de que «A, apesar de que deveria, NÃO permite B».

Pesquisei sobre isso e creio que o verbo dever (no futuro do pretérito) no caso é um verbo (auxiliar) modal que expressa algum tipo de aspecto que quem escreveu quis dar ao verbo principal. Se esse aspecto é o mesmo que expressei no parágrafo anterior é a minha dúvida (ou se existe algum outro possível significado).

Pelo que pesquisei, achei difícil encontrar material sobre esse assunto específico (verbos modais). Na Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Cunha e Cintra, por exemplo, só encontrei uma brevíssima referência a eles na página 478 da 5.ª edição, e ainda como observação (a não ser que, em outro lugar do livro, me tenha passado despercebido).

Se existir material sobre isso (verbos modais, em especial o dever no futuro do pretérito, ou nem tão específico assim mesmo), seria possível me indicar tais?

Aliás, já comentando sobre o site, que é muito bom por sinal, seria interessante ver mais referências e sugestões de leitura sobre os assuntos perguntados (pelo menos eu gosto de ir além das respostas que me são dadas).

Grato pela atenção e parabéns pelo ótimo trabalho que vem sendo feito.

Resposta

Sobre a frase em questão, é claro que, quando se pronuncia «A deveria permitir B», se pode inferir que ainda não se verifica a permissão de B no momento em que se enuncia tal frase. Mas isso é uma propriedade dos enunciados em que ocorre o modal dever, com valor deôntico, isto é, exprimindo obrigação: neles se marca a perspectiva do enunciador sobre a atitude de outrem em relação a determinada situação, dando a ideia de uma proposta; também é possível entender tais enunciados como uma crítica sobre uma realidade com a qual o enunciador não concorda, o que é reforçado pela forma «deveria» (condicional em Portugal; futuro do pretérito no Brasil).1

Importa lembrar que «os modais dever, poder, ter de e ser capaz de apresentam um significado impreciso ou indeterminado, dependendo em grande medida dos contextos em que surgem para determinar qual o domínio, raciocínio ou acção, a que se aplicam» (M.ª Helena Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, pp. 249-250).

Ao verbo dever são atribuídos vários valores modais:2

a) o de necessidade (a par de ter de), na modalidade externa ao participante, como se pode ver no seguinte exemplo:

«Para ir para a universidade, deves/tens de apanhar o autocarro 20»;

b) o de obrigação directa ou relatada, a par de ter de (modalidade deôntica):

«Tu deves/tens de sair já»;

«O Rui deve/tem de sair já»;

c) os de probabilidade e de incerteza (tal como poder), exprimindo a modalidade epistémica:

«O Jorge deve/pode ter chegado há minutos.»

1 Sobre o verbo dever, para além da obra citada pelo consulente — Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo —, a Gramática da Língua Portuguesa (Maria Helena Mira Mateus et alii, 6.ª ed., Lisboa, Caminho, 2003) dedica um capítulo (cap. 9) a «Modalidade e Modo» (pp. 243-272), debruçando-se sobre a especificidade dos verbos modais dever, poder e ter de, do seu valor ou tipo de modalidade — do domínio da possibilidade, da necessidade e da obrigatoriedade (pp. 247-248) e a articulação entre os verbos modais e a negação (pp. 250-254). Também a obra de João Peres e Telmo Móia, Áreas Críticas da Língua Portuguesa (Lisboa, Caminho, 1995), trata, em várias partes, das particularidades de alguns casos do uso do verbo dever — «as predicações cujo predicador é o verbo dever, na acepção de dever deôntico» (pp. 182-185), «a particularidade de a concordância de tipo passivo ser feita entre um verbo modal — dever, com um valor alético-epistémico» (p. 240) e «os verbos poder e dever na classe dos verbos aléticos, isto é, aqueles que exprimem um valor de possibilidade ou de necessidade de ocorrência de situações» (p. 257). É de assinalar, ainda, uma outra referência bibliográfica: Campos, Maria Henriqueta Costa, Dever e poder. Um subsistema modal do português, Lisboa, Fundação Gulbenkian/JNICT, 1998.

2 Em Mateus et al. (op. cit., p. 248) distinguem-se quatro tipos de modalidade, a saber: modalidade interna ao participante (marcada por poder, ser capaz, precisar, necessitar), modalidade externa ao participante (marcada por poder, dever e ter de), modalidade deôntica (marcada também por poder, dever e ter de) e modalidade epistémica (poder, dever, ter de, ser capaz de), assim definidas (idem, n.º 7): «No primeiro caso lidamos com capacidade e necessidade (interna ao participante). No segundo caso estamos a lidar com circunstâncias que são externas ao participante envolvido numa situação, mas que a tornam possível ou necessária. A modalidade deôntica diz respeito às circunstâncias externas (pessoais, regras sociais ou normas...) que permitem ou obrigam o participante a envolver-se na situação. Por último, a modalidade epistémica está relacionada com o domínio da incerteza, da probabilidade [...].»

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