Sobre a frase em questão, é claro que, quando se pronuncia «A deveria permitir B», se pode inferir que ainda não se verifica a permissão de B no momento em que se enuncia tal frase. Mas isso é uma propriedade dos enunciados em que ocorre o modal dever, com valor deôntico, isto é, exprimindo obrigação: neles se marca a perspectiva do enunciador sobre a atitude de outrem em relação a determinada situação, dando a ideia de uma proposta; também é possível entender tais enunciados como uma crítica sobre uma realidade com a qual o enunciador não concorda, o que é reforçado pela forma «deveria» (condicional em Portugal; futuro do pretérito no Brasil).1
Importa lembrar que «os modais dever, poder, ter de e ser capaz de apresentam um significado impreciso ou indeterminado, dependendo em grande medida dos contextos em que surgem para determinar qual o domínio, raciocínio ou acção, a que se aplicam» (M.ª Helena Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa, pp. 249-250).
Ao verbo dever são atribuídos vários valores modais:2
a) o de necessidade (a par de ter de), na modalidade externa ao participante, como se pode ver no seguinte exemplo:
«Para ir para a universidade, deves/tens de apanhar o autocarro 20»;
b) o de obrigação directa ou relatada, a par de ter de (modalidade deôntica):
«Tu deves/tens de sair já»;
«O Rui deve/tem de sair já»;
c) os de probabilidade e de incerteza (tal como poder), exprimindo a modalidade epistémica:
«O Jorge deve/pode ter chegado há minutos.»
1 Sobre o verbo dever, para além da obra citada pelo consulente — Celso Cunha e Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo —, a Gramática da Língua Portuguesa (Maria Helena Mira Mateus et alii, 6.ª ed., Lisboa, Caminho, 2003) dedica um capítulo (cap. 9) a «Modalidade e Modo» (pp. 243-272), debruçando-se sobre a especificidade dos verbos modais dever, poder e ter de, do seu valor ou tipo de modalidade — do domínio da possibilidade, da necessidade e da obrigatoriedade (pp. 247-248) e a articulação entre os verbos modais e a negação (pp. 250-254). Também a obra de João Peres e Telmo Móia, Áreas Críticas da Língua Portuguesa (Lisboa, Caminho, 1995), trata, em várias partes, das particularidades de alguns casos do uso do verbo dever — «as predicações cujo predicador é o verbo dever, na acepção de dever deôntico» (pp. 182-185), «a particularidade de a concordância de tipo passivo ser feita entre um verbo modal — dever, com um valor alético-epistémico» (p. 240) e «os verbos poder e dever na classe dos verbos aléticos, isto é, aqueles que exprimem um valor de possibilidade ou de necessidade de ocorrência de situações» (p. 257). É de assinalar, ainda, uma outra referência bibliográfica: Campos, Maria Henriqueta Costa, Dever e poder. Um subsistema modal do português, Lisboa, Fundação Gulbenkian/JNICT, 1998.
2 Em Mateus et al. (op. cit., p. 248) distinguem-se quatro tipos de modalidade, a saber: modalidade interna ao participante (marcada por poder, ser capaz, precisar, necessitar), modalidade externa ao participante (marcada por poder, dever e ter de), modalidade deôntica (marcada também por poder, dever e ter de) e modalidade epistémica (poder, dever, ter de, ser capaz de), assim definidas (idem, n.º 7): «No primeiro caso lidamos com capacidade e necessidade (interna ao participante). No segundo caso estamos a lidar com circunstâncias que são externas ao participante envolvido numa situação, mas que a tornam possível ou necessária. A modalidade deôntica diz respeito às circunstâncias externas (pessoais, regras sociais ou normas...) que permitem ou obrigam o participante a envolver-se na situação. Por último, a modalidade epistémica está relacionada com o domínio da incerteza, da probabilidade [...].»