DÚVIDAS

Ainda sobre a origem da palavra saudade

A respeito da consulta formulada, em 3/6/2011, pelo Sr. Luiz Eduardo Bizin, professor em Sydney, Austrália, sobre a origem da palavra saudade, o Sr. Carlos Rocha nos dá excelente aula sobre o tema. Em resposta anterior, sobre o mesmo assunto, no Ciberdúvidas, foi feita menção ao verbete no magnífico dicionário de José Pedro Machado. Tenho esse dicionário e em sua epígrafe Machado diz que «Cabe ao [dicionário] de Antenor Nascentes o pioneirismo dos dicionários portugueses só etimológicos. De onde se depreende que todos os mais são e serão seus seguidores». Nascentes parece ter se dedicado com muito afinco ao vocábulo, e como esse dicionário é de 1932, reimpresso em 1955, mas hoje raro, tomo a liberdade de aqui reproduzir tudo que ele apurou sobre essa tão rica particularidade da língua portuguesa, sem correspondência semântica idêntica em qualquer língua; a mais semelhante que encontrei foi no catalão, enyorança, mas ainda assim incompleta porque não exige a vontade de rever.

«SAUDADE – Do lat. solitate, solidão, desamparo, que deu o arc. soedade, soidade, suidade, que sofreu influência de saudar (Diez, Dic., 486, M. Lübke, REW, 8074, A. Coelho, Pacheco J., Gram. Hist., 153, Pacheco e Lameira, Gram Port., 347, Leite de Vasconcelos, Opúsculos, I, 216, G. Viana, Apost., II, 407, Otoniel Mata, O meu idioma, 217, Nunes, Gram. Hist., 95, Xavier Fernandes, ALP, III, 73-6); esp. soledad, gal. soidade, soidá, soedade, soedá, suidade, saudade. Do significado de solidão, desamparo, passou ao do sentimento de quem se encontra solitário, longe daquilo que ama, a pátria, a família. Soedade encontra-se em Arraiz, Diálogos, II, 12 e V, 1. Soidade aparece (às vezes soydade) no Cancioneiro da Vaticana, ns. 119, 210, 214, etc., Cancioneiro da Ajuda, n. 389, e Azurara, Crônica da Guiné, 142. Finalmente suidade, aliás, suydade, em D. Duarte, Leal Conselheiro, 112, 151, 157, Cancioneiro da Vaticana, n. 758, Azurara, op. cit., 340, Samuel Usque, Tribulações de Israel, 3º , fl. 40 v, Conde D. Pedra, Livro da virtuosa bemfeitoria, 206 e 292. No século XVI a forma arcaica ainda aparece viva na Imagem da vida cristã, de Fr. Heitor Pinto, mas a moderna já aparece em Camões, soneto 83, Lusíadas, III, 124, em Gil Vicente, no Cancioneiro Geral, 39 v., na Eufrosina, etc. Eduardo Carlos Pereira, Gram. Hist., 66, viu influência de saúde. Cortesão admitiu a inaceitável série: soidade- *soadade- *suadade- saudade. G. Viana aceitou a influência de soudade, pronúncia vulgar a que corresponde outra mais vulgar em Lisboa sòdade. Cláudio Basto, RL, XVII, 275, XVIII, 178, admite que a transformação de soidade em saudade é de ordem literária; a mudança de oi em au seria influenciada, para assim dizer, por uma falsa latinização, ao invés da habitual mudança de au em oi. Lembra que já Bernardo de Lima, Dicionário da Língua Portuguesa, pág. VII, queria atribuir essa mudança aos escritores, quando notava ser o vocábulo saudade mais harmônico que soidade e que, por isso, embora havendo tido igual uso, começara a ser mais usado. C. Michaelis, A saudade portuguesa, objeta que, se o ditongo latino au se pode transformar em oi, cfr. auro, ouro, oiro, oi não pode transformar-se em au, logo é difícil admitir que de soidade saísse saudade.

Além disso, da forma saudade, que parece moderna, há exemplos, raros, é certo; em documentos do século XIV, como a Vida de Santo Amaro: E Velliides lhes disse: Ay amigas, nom choredes ante ell, que auerá gran coyta e gran saudade (fI. 119). Entendeu aquela autora que devia ter havido confusão entre saúde, saudação, saudar (de salutare) com a palavra saudade, que derivaria de uma forma salutate. João Ribeiro, Curiosidades Verbais, 197-201, entende que saudade pode provir do ár. saudá.

De acôrdo com informações do professor Ragy Basile, apresenta três expressões árabes, suad, saudá e suaidá, que têm o sentido moral de profunda tristeza e literalmente do sangue pisado e preto dentro do coração; na medicina as-saudá é uma doença do fígado que se revela pela tristeza amarga e melancólica. Poderia objetar-se, acrescenta êste autor, que são raras as palavras que exprimem sentimento, tomadas no árabe. Convém, entretanto, lembrar que a palavra, como foi dito, designa igualmente uma doença e muitas dêsse teor vieram do árabe: achaque, enxaqueca, soda (dor de cabeça), etc. E também são doenças a morriña galega, que traduz saudade e o Heimveh alemão que migrou do sul para o norte.

E toda medicina hispânica e européia foi na era medieval ensinada por Avicena, Averroés e outros grandes mestres. Há perfeita identidade entre moléstias nervosas e sentimentos: hipocondria, melancolia, angústias... A respeito do vocábulo convém consultar: D. Duarte, Leal Conselheiro, cap. Do nojo, pesar, desprazer, avorrecimento e suydade; Duarte Nunes do Leão, Origem da lingoa portuguesa, 3ª ed., pg. 79; Fr. Isidoro de Barreira, Tratado das significações das plantas, flores e frutos que se referem na Sagrada Escritura; Severim de Faria, Notícias de Portugal; Sousa Macedo, Flores de Espanha e excelências de Portugal; D. Francisco Manuel de Melo, Epanáfora, ed. de 1676, pg. 287; Garrett, Camões; Camilo, Coisas leves e pesadas, pg. 91; Cortesão, artigo na revista portuense A Águia, 2ª série, 116; G. Viana, artigo na revista O Positivismo, IV, 169-70; C. Michaelis, A Saudade portuguesa, Julio Dantas, artigo em o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro.»

Resposta

Em nome do Ciberdúvidas, muito agradeço o precioso apontamento que enviou, porque de facto é difícil ter acesso ao Dicionário Etimológico de Antenor Nascentes.

Só queria deixar uma observação, que diz respeito à palavra saudade: é certo que é uma particularidade da língua portuguesa, mas penso que todas as línguas se assemelham nas particularidades que exibem em diferentes níveis de análise (lexical, fonológico, morfológico, sintáctico, pragramático, etc.). É, pois, comum que cada língua possua palavras, expressões ou construções, com valor referencial concreto ou abstracto, que são intraduzíveis numa língua diferente. No que aos sentimentos se refere, então, essa divergência é muito frequente, mas também não se pode dizer que entre as línguas de uma mesma área cultural ou de áreas culturais vizinhas não seja impossível encontrar traduções, ainda que, como indica o autor, se trate de aproximações. Além disso, quando se fala de uma palavra, é necessário, por um lado, ter em conta a sua companhia, isto é, o seu contexto, e, por outro, a relação com palavras que partilhem o mesmo radical.  Ora, essa é a faceta que mais varia de língua para língua, uma vez que em línguas diferentes palavras equivalentes ocupam muitas vezes contextos diferentes.

Assim, pegando no exemplo de enyorança em catalão, que tem a forma castelhana añoranza, verifica-se que tem um significado próximo do de saudade: «Pena o dolor per l’absència, per la pèrdua d’alguna cosa o d’alguna persona» (Diccionari de la Llengua Catalana do Institut d´Estudis Catalans; tradução livre: «pena o dor pela ausência, pela perda de alguma coisa ou de alguma pessoa»). Ora bem, é curioso verificar que enyorança tem um verbo correspondente, enyorar, «sentir pena d’ésser absent (d’un país), d’haver perdut (algú o alguna cosa). Enyorar algú la seva terra» [tradução livre: «sentir pena por estar ausente (dum país), por ter perdido (alguém ou alguma coisa). Alguém ter saudades da sua terra») Note-se que, em português, temos de recorrer a uma perífrase, ter saudade ou ter saudades. Refira-se, por último, que, nos estudos românicos, costuma dizer-se que saudade tem um bom equivalente em romeno, na palavra dor.

Cf. 3 palavras que não se conseguem traduzir +  Algumas Curiosidades da Palavra “Saudade”  +  A saudade, fundamento da literatura portuguesa

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